Manutenção do calendário (de Tróia) e de uma vida severina

Eu estou aqui acompanhando o debate acerca da suspensão ou não do calendário já fictício da UFES.  Tentam não suspender um calendário que já não existe mais, ou melhor, existe para alguns. A questão do calendário se tornou um grande analisador das relações de poder na UFES, das práticas de gestão, das concepções de formação, do esvaziamento político do debate acadêmico nos últimos anos, quiça décadas.

Possivelmente o CEPE não aprovará esta suspensão, possivelmente a atual administração da UFES conseguirá seu intento, que é manter as coisas como estão, como se algo gravíssimo não estivesse ocorrendo. Mas acho que há um elemento surpresa que é o sindicato dos docentes ter tornado o calendário acadêmico um ponto de debates calorosos. Porque, na verdade, não é de calendário que se trata, não é mesmo? Alguns colegas também dizem que não é de educação à distância que se trata. A maioria não sabe a diferença entre EAD e teletrabalho. Uma parte considerável pensa que é fácil substituir aulas presenciais por aulas online. Como se formar alguém se reduzisse a aulas presenciais.

Certamente a UFES, ao final deste processo, terá duas grandes filas: a dos estudantes que puderam ter atividades online, e a de estudantes que não puderem ter atividades online. Uma fila dos mais abastados e uma fila dos pobres, em sua maioria negros. Uns seguirão seu curso, suas bolsas, seus diplomas, outros ficarão esperando, para trás, ao final. Porque, afinal, se trata de meritocracia. Democracia, nunca se viu de forma intensa, nunca tivemos por ali. A fila dos pobres sabe bem o que ficar esperando, para trás. Lutaram e lutam todos os dias contra o racismo fora e dentro da UFES. Os argumentos que constrangem uns e outros? Cortes de salários, cortes de auxílios, cortes de verbas, corte disso, corte daquilo, ameaças disso, perigo daquilo.

Atualizamos na UFES a falsa dicotomia entre preservar vidas, cuidando da saúde, ou prejudicar a economia. Não precisamos de um fascista no poder a tornar nossas vidas um inferno, nós mesmos assumimos a função de capatazes, de arautos da moral, de defensores de uma suposta ordem que não existe e se esvai por nossos dedos, de apaziguadores do que não pode ser apaziguado. E assim vamos aceitando uma vida mirrada, amesquinhada. Impediram a reitora eleita de assumir, o presidente nomeou o segundo da lista, não fizemos nada. Agora parte dos colegas assina embaixo e defende com argumentos frágeis, usando parecer judicial, a impossibilidade de suspender um calendário que está caduco, inviável, retorcido.  Triste tempos em que se contenta com pouco, em que se aceita viver uma vida severina.

Orgulho sempre do Departamento de Psicologia da UFES do qual fiz parte por recusar este estado de coisas amesquinhado. Triste em ver o CCHN, o Centro das Humanas da UFES, optar pelo caminho apresentado como menos tortuoso e rejeitar a suspensão do calendário acadêmico. Triste sinal dos tempos em que vivemos. Parabéns à direção da Adufes por colocar no centro da conversa perguntas que nem certos grupos menos conservadores ou nomeados como de esquerda desejam se confrontar. Está me parecendo que quem ganhar no voto perderá politicamente.

*Ana Heckert – Professora recentemente aposentada da UFES, tendo atuado no Departamento de Psicologia. É docentedo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional da UFES.

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