Isolamento social, economia e ciência na maior crise do século

A Epidemiologia no enfrentamento da pandemia de coronavírus – parte 1[1]

Gostaria de começar este artigo com três premissas:

  1. Estamos diante da maior crise do século
  2. O tempo é o nosso maior aliado
  3. A ciência é a única que pode responder a essa crise

A crise

Em 2019, o mundo se deparou com um novo vírus que se espalhou a partir da região de Wuhan, na China. A Organização Mundial da Saúde (OMS) classificou a situação como emergência internacional e, em 11 de março de 2020, o vírus passou a ser considerado uma doença pandêmica. Ele pertence à família dos coronavírus, um grupo que reúne desde agentes infecciosos que provocam sintomas de resfriado até outros com manifestações mais graves, como os causadores da SARS (sigla em inglês para Síndrome Respiratória Aguda Grave) e da MERS (Síndrome Respiratória do Oriente Médio).

Todos os países, a partir de então, ficaram em estado de alerta, preparando-se de diferentes formas para o enfrentamento da pandemia. A confirmação, no dia 26 de fevereiro de 2020, do primeiro caso no Brasil de COVID-19 (coronavirus disease), nome com o qual a doença foi batizada, deixou a população brasileira ciente de que a epidemia também estava entre nós.

E por que acredito que estamos diante da maior crise do século? Porque o vírus causador da doença se propaga rapidamente e, apesar de o número de mortes não ser grande, comparado a outras doenças, a velocidade do seu espalhamento sobrecarrega os sistemas de saúde. Essa sobrecarga faz com que os cuidados ao indivíduo doente sejam mais precários, o que, em última instância, também provoca mais mortes.

Além disso, é a maior crise porque atinge o sistema econômico. À semelhança da pandemia de 1918, que ficou conhecida como gripe espanhola, a pandemia de coronavírus também afeta diretamente a economia, já que não temos outra estratégia que não o isolamento social e o consequente fechamento de estabelecimentos comerciais e diminuição de circulação de pessoas para promover o retardamento do número de casos.

O tempo 

Bem, nessa luta, o tempo tem sido nosso maior aliado. Países que reagiram mais tardiamente à propagação do vírus assistiram incrédulos ao aumento exponencial de casos e de mortes. O Brasil iniciou o isolamento social no momento certo, antes de a curva de contaminação se tornar muito ascendente, no entanto as medidas de fechamento de fronteiras foram retardadas e insuficientes.

Um dos principais problemas é a velocidade de mutação do vírus. Ainda conhecemos pouco o COVID-19, mas o que sabemos é que vírus baseados em RNA (ácido ribonucleico), como o coronavírus e o vírus da influenza, tendem a fazer mutações aproximadamente cem vezes mais rápidas que vírus baseados em DNA (ácido desoxirribonucleico). Por isso, precisamos nos vacinar contra a influenza todo ano, pela mudança nas cepas virais. A possibilidade que então se apresenta é de o vírus fazer mutações que o tornem mais virulento e, com isso, causar mais mortes.

O tempo também tem sido um determinante na evolução dos casos graves. A maioria dos pacientes começa com uma gripe comum e evolui rapidamente para insuficiência respiratória aguda decorrente de uma pneumonia. Porém, a inflamação é tão grande que pode levar à septicemia. Mesmo para aqueles que ficam curados, só o tempo poderá dizer como irão superar sequelas pulmonares relacionadas à doença.

O vírus se propaga exponencialmente em horas, dias e meses em que medidas não são tomadas. Portanto, o tempo é o maior aliado na preparação do nosso sistema de saúde e, consequentemente, da nossa resposta a essa batalha.

A ciência 

Desde de 1998, tenho me dedicado à Epidemiologia. Nesse período, incontáveis vezes, quando me apresentei, precisava explicar o que era uma epidemiologista. Estudar como as doenças se distribuem e o que determina essa distribuição é nosso foco de pesquisa. Agora, pela primeira vez, vejo pessoas leigas falarem em achatamento da curva, grupos de risco, velocidade de propagação e entenderem o que a Epidemiologia faz e em que contribui.

A ciência e, nesse caso, a Epidemiologia têm demonstrado que o isolamento social é a melhor estratégia, pois permite que as pessoas se infectem em uma velocidade menor e, com isso, o sistema absorva os casos graves. Nesse sentido, a ciência nos ensina quais estratégias foram mais vitoriosas. Dentre elas, citamos a de Singapura: testes eficientes, rastreamento eficiente, proibições de viagens, isolamento eficiente e quarentena eficiente.

Isso demonstra que, quando as pessoas são massivamente testadas, podem ser identificadas antes mesmo de apresentarem sintomas. Em quarentena, eles não podem espalhar a doença. Se as pessoas são treinadas para identificar seus sintomas mais cedo, elas reduzem o número de dias que estarão circulando. Se as pessoas são educadas sobre distância pessoal, uso de máscaras, lavagem das mãos ou desinfecção de espaços, elas espalham menos vírus por todo o período. Somente quando tudo isso falha é que precisamos de medidas mais duras de distanciamento social.

No Brasil, não temos testes suficientes para isolar infectados e não infectados no início dos sintomas, não respondemos no tempo curto às medidas de quarentena, e algumas camadas da população enfrentam dificuldades em suas vidas diárias, incluindo fatores impeditivos para lavagem de mãos e desinfecção dos espaços. Portanto, as medidas precisam ser mais duras de isolamento aqui.

Em Epidemiologia, chamamos de R0 a capacidade de contágio de um micro-organismo. Pode ser dito que uma doença infecciosa se torna endêmica quando, em média, cada pessoa infectada está infectando exatamente uma outra pessoa (em termos matemáticos, R0=1). Um número maior que 1 (R0>1) irá fazer com que o número de pessoas infectadas cresça exponencialmente e, dessa forma, haverá uma epidemia. Por outro lado, qualquer número menor que 1 (R0<1) levará à eliminação da doença. No caso desta pandemia (epidemia com espalhamento global), o R0 é de aproximadamente 3, ou seja, cada pessoa infecta três, que infecta mais três e assim por diante, em escala exponencial.

Há, no entanto, divergências sobre a melhor forma de aplicar o isolamento, se vertical ou horizontal. No vertical, isolamos grupos de risco: idosos, pessoas com diabetes ou com doenças imunossupressoras ou cardiorrespiratórias. No horizontal, as medidas são abrangentes para o isolamento social e a restrição de circulação de todos os grupos, incluindo a quarentena total ou lockdown, no qual o governo proíbe a movimentação de pessoas e chega a estabelecer multas e até prisão. Pesquisadores chineses comprovaram que o lockdown em Wuhan, epicentro da pandemia, pode ter reduzido em 92% o número de casos graves.

Diante do exposto, em países como o Brasil – onde medidas de testagem em massa, isolamento dos infectados e oferta de produtos de higiene e limpeza não estão disponíveis a toda a população de forma igualitária –, o isolamento vertical pode se mostrar perigoso, irresponsável e até mesmo criminoso, levando milhares de pessoas à morte prematura. A ciência está nos alertando sobre os riscos, cabe aos dirigentes políticos escolher o caminho a ser trilhado nessa batalha que está apenas em seu início.

A Epidemiologia no enfrentamento à pandemia de coronavírus – parte 2[2]

Há países que investem na ciência, fazendo com que ela avance rapidamente. Entretanto, no Brasil, devido a tantos cortes de investimentos sofridos nos últimos anos, o avanço tem sido mais lento, impactando tal desinvestimento em precarização de laboratórios e desarticulação de grupos de pesquisa.

O mês de abril trouxe, no entanto, novas descobertas. A forma como os países enfrentaram a pandemia, demostra mais ou menos sucesso, o que pode ser verificado pelo número de mortes e pelo tempo de colapso do sistema de saúde. A epidemiologia foi posta à prova por meio de três estratégias. A primeira, adotada pelo Reino Unido da imunidade em massa. Deixa a doença seguir seu curso natural e infectar e causar os casos graves. Nas duas primeiras semanas, a estratégia mostrou-se tão inefetiva e a pandemia tão velozmente violenta que o colapso de um dos melhores sistemas de saúde do mundo, chegou quase ao limite. As autoridades precisaram então assumir a segunda estratégia. A mesma adotada pelos Estados Unidos, pelo Brasil, dentre outros países, isto é: o isolamento social para desacelerar a curva. Serviços essenciais e outros considerados importantes foram autorizados a funcionar e todos os outros permaneceram fechados, assim como escolas e qualquer evento com aglomeração. A terceira estratégia foi adotada pela Nova Zelândia e Austrália: o isolamento social restritivo, com apenas serviços essenciais abertos, estratégia denominada esmagamento da curva. Essa estratégia visa proteger todos os cidadãos de se contaminarem, através do fechamento de fronteiras precoce e monitoramento em tempo real de todos os infectados com medidas duras para a contenção da propagação do vírus. Dentre as duas últimas, ainda é cedo para saber qual estratégia de controle epidemiológico será mais efetiva a longo prazo.

No Espirito Santo, desde o dia 22, estamos sob o decreto dos mapas de risco, que definiram os municípios de acordo com sua classificação de risco em baixo, moderado, grave e extremo. Até o momento não temos nenhum município classificado como extremo. Essa classificação é dinâmica e visa atualizar semanalmente o risco dos municípios, de acordo com o número de casos e a capacidade hospitalar do estado. A ideia é termos parâmetros para monitorar a doença no longo prazo, já que as últimas pesquisas revelam que sem uma vacina ou sem um medicamento efetivo, poderemos conviver com a doença pelos próximos 18 ou 24 meses. A gestão de risco tem dois objetivos principais, proteger as áreas classificadas como risco baixo ou moderado e também conter a mobilidade das áreas de risco grave. Sendo os dois objetivos cumpridos, teremos um controle epidemiológico em médio e longo prazo.

Outro ponto não menos importante, é a falsa dicotomia entre isolamento social e economia. Digo falsa, pois o isolamento é uma estratégia de saúde pública e a economia tem suas próprias estratégias, que devem ser colocadas em ação durante uma crise econômica. Quando tivemos a reforma trabalhista, os economistas não vieram até nós (profissionais da saúde), para nos consultar sobre os impactos desta reforma na saúde dos trabalhadores. Assim como não fomos consultados quando na crise de 2008, os bancos receberam investimentos trilionários, retirando dinheiro da saúde e da educação. Agora, em um momento crucial da vida de milhões ao redor do mundo, esses mesmos economistas, querem que os profissionais da saúde abram mão da única estratégia que temos para salvar vidas. Agora, meus senhores, nossa resposta deve ser NÃO! A economia terá que desenvolver suas próprias estratégias, sem macular a única estratégia de saúde pública. Aqui não há dilema, há a única escolha possível: SALVAR VIDAS!

E quando devemos voltar à normalidade? É a pergunta que mais me fazem. A resposta no momento é: teremos que nos adaptar a uma nova normalidade. As aglomerações farão parte do passado por um tempo, o distanciamento terá que ser nossa nova etiqueta e as relações mais virtuais que esperávamos. Isso nos impulsiona a buscar novas estratégias, principalmente frente às desigualdades em nosso país e em nosso estado. Diminuir o enorme fosso entre aqueles que têm acesso ao mundo virtual e aqueles que não têm, será a nova fronteira da redução de desigualdade. De que forma lidaremos com isso? Esse será nosso maior desafio! Em Alguns países, escolas ofertaram equipamentos e pacotes de acesso à internet para os estudantes em situação de vulnerabilidade. Sabemos, no entanto, que há situações mais urgentes em nosso estado, pois há falta de alimentação adequada, há falta de moradia decente. Condições básicas de vida que precedem o acesso à internet. É preciso construir novos paradigmas. É preciso se indignar com a escassez e a falta de oportunidades, uma das doenças produzida pela nossa sociedade. Encontrar a cura, com programas estruturados de habitação e emprego, nos farão encontrar a saída mais rápida para as próximas crises que virão. E elas virão certamente.

[1] Publicado em: http://coronavirus.ufes.br/conteudo/epidemiologia-no-enfrentamento-da-pandemia-de-coronavirus

[2] Redigido em 24 de abril de 2020.

*Professora Ethel Leonor Noia Maciel – Epidemiologista em doenças infecciosas.

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