O “novo normal” é o velho desigual

A proposta da ADUFES de suspensão do calendário é fundamental. Infelizmente, porém, os professores da UFES, aparentemente, não vão apoiar. Há um parecer de procuradores da instituição que ameaça com o não pagamento do salário caso o calendário seja suspenso. Além dele, vários outros pareceres das Pró-Reitorias, todos contrários à suspensão. O argumento básico é o de que o calendário, que é uma programação, não pode ser separado das atividades. Entre elas, por exemplo, o pagamento dos auxílios estudantis. Ora, planejamento é uma previsão, que pode não se confirmar empiricamente por variadas razões. É por isso que os calendários podem ser alterados, se for necessário. Neste momento, estamos vivendo a maior crise sanitária do planeta Terra em 102 anos. Se isso não é uma boa razão a afetar qualquer planejamento, então não consigo imaginar outra melhor, tirando uma guerra ou invasão dos ETs.

É uma necessidade que fiquemos em casa e que não haja aulas presenciais. É uma situação atípica. Neste momento, é necessário que tudo o que implique em aglomeração seja suspenso. Eu não deixei de dar aula porque quero. Se fui afastado das aulas por uma necessidade, não há razão para que o meu salário seja suspenso. Também não há razão para que os auxílios estudantis sejam suspensos. Temos que parar para salvar vidas. Há algo mais relevante que a vida? Quanto mais bem executada for a quarentena, maior a chance de que consigamos evitar novas ondas de infecção e possamos retornar mais rápido. NÃO ESTAMOS VIVENDO UMA SITUAÇÃO NORMAL. Por isso, NÃO PODEMOS USAR CRITÉRIOS NORMAIS PARA AVALIAR O QUE ESTÁ OCORRENDO. As autoridades associam a formalidade de um calendário com as atividades. E concluem: calendário suspenso significa que as pessoas não estão trabalhando, então não podem ser pagas. Portanto, vamos continuar com o calendário, com prazos que já venceram, com a possibilidade de aplicar atividades não presenciais que não são obrigatórias para os estudantes. Tudo porque temos que ter um calendário!

A diarista que trabalha na minha casa foi dispensada. Sua diária está sendo paga e estamos fazendo o trabalho dela. Isso é culpa dela? Claro que não! Ele terá que repor o trabalho que deixou de fazer? Claro que não! É necessário suspender tudo o que não é essencial e manter os pagamentos das pessoas, inclusive dos professores substitutos. E o dinheiro “perdido”? O que é melhor? “Perder” dinheiro ou preservar vidas? Acho uma pena que os representantes estudantis não tenham participado da reunião do meu departamento que discutiu o assunto. Fico triste pelos estudantes que estão quase se formando e terão que esperar mais. E também pelos que, talvez, venham a ingressar mais tarde na Universidade. Porém, pagar salários de quem não pode se deslocar para o emprego e atrasar ou até eliminar vários tipos de atividades é necessário pelo bem comum.

Já estão falando sobre a “inevitabilidade” do recurso a aulas online para “salvar” o semestre. Ensino não se resume a ter aula expositiva online. Mesmo assim, deixamos que, até dentro da Universidade, o preconceito social que reduz o trabalho docente a aula expositiva se reproduza. E estamos cedendo a soluções que atacam diretamente o direito trabalhista dos docentes. Aula online implica em pagamento de direito de som, direito de imagem e direito autoral. Sim, a aula online, em si, é uma produção autoral que tem que ser remunerada. Por quê? Porque ela é produto de um conjunto de ações (som, imagem, produção de conhecimento) que exige certas habilidades, que exige tempo especificamente dedicado. A jornada de trabalho é alterada pelas gravações. Gastamos dinheiro de nossos pacotes de dados, de nossos equipamentos.

Disputamos equipamentos (computadores e celulares) com outras pessoas da casa. Se estou em casa fazendo a limpeza que a minha diarista não faz; se estou em casa com meus filhos e cuidando deles e os acompanhando nas atividades (até aulas online deles); se estou em casa fazendo comida, lavando louça (quando, muitas vezes, eu faço as refeições na rua por ser parte da minha rotina de trabalho); se estou em casa cuidando de uma pessoa doente, a minha jornada de trabalho fica alterada. Se tenho que gravar aulas nestas condições, estou trabalhando muito mais. Minhas aulas gravadas podem ser, depois, retransmitidas sem a minha permissão, desrespeitando o meu direito autoral. Então, a instituição tem que me remunerar pelo direito de som, de imagem, autoral, pela alteração da minha jornada. Além disso, o trabalho à distância me leva a fazer trabalho de tutoria (elaboração, correção, orientação de trabalhos, exercícios, atividades didáticas diversas), que deveria exigir a contratação de profissionais específicos para esta função.

Tenho ex-alunos que estão, de boa vontade, criando perfis de Instagram como professores, publicando materiais de ensino gratuitamente. Outros estão gravando aulas e publicando de graça no YouTube. Compreendo o entusiasmo de muitos e a vontade de ajudar os seus alunos, porém, o que estamos fazendo hoje, em plena pandemia, poderá ter resultados graves para os direitos trabalhistas do magistério. Fazemos tudo isso de graça. Admitimos aulas online na Universidade para “salvar” o período. Não discutimos os direitos trabalhistas de som, imagem, autoral, jornada de trabalho alterada, de remuneração por trabalho de tutoria ou a proteção que as escolas têm que prover para que as aulas não sejam reproduzidas sem o pagamento do direito autoral. Agimos como “sacerdotes” que se sacrificam pelo conhecimento e criamos precedentes para que os governos e os donos de escolas e faculdades privadas nunca paguem pelo direito trabalhista. Será que, algum dia, patrões não vão usar como critério para contratar que os professores já tenham materiais gratuitos de alta qualidade gráfica em suas redes sociais, aumentando a competição entre docentes? O que estamos fazendo hoje pode ter graves consequências para nossa luta sindical e para os futuros docentes.

É por isso que eu defendi, tendo sido derrotado, que o calendário tivesse sido suspenso, que não houvesse correlação entre calendário e atividades (continuar pagando auxílios estudantis, contratos de substitutos, contratos de terceirizados da limpeza, etc.) e que, em nenhuma hipótese, se discuta o recurso a aulas online. Se isso vier a acontecer, que se realize apenas por meio de pagamento dos direitos trabalhistas, devidamente negociados com o Sindicato e com sua base. Ah, não tem dinheiro para pagar! Mas tem R$ 1 trilhão para os bancos.

*André Ricardo Valle Vasco Pereira – Professor do departamento de história (UFES) e doutor em ciência política.

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