Política na pandemia: espaços em disputa

Se nossas formas de comunicação e de interatividade mediadas pelas redes e fluxos digitais já havia se consolidado – relativizando inclusive as noções de presença/ausência –, tendo sido exaltadas por sua possibilidade de superar ainda mais as barreiras do tempo e do espaço, vimo-nos, a partir das imposições da epidemia do Coronavírus, sob a quase total dependência dessa estrutura, porém confinados em nossos ambientes individuais e privados.

Considerando que a territorialidade se define a partir de nossas relações sociais, também fomos remetidos a um processo de reterritorialização desses espaços mais reservados, de intimidade e de afetos. Isso significa não apenas uma impossibilidade do livre ir e vir – pelo menos para uma parte da população – mas principalmente o impedimento de aglomerações e que, neste momento, representa também o impedimento de ações coletivas de caráter político.

As “jornadas” e “primaveras” que marcaram grandes reviravoltas políticas em vários países ao longo da segunda década dos anos 2000 foram capazes de levar multidões às ruas, em ações articuladas pelas redes sociais digitais. Estar também nas ruas se tornou um imperativo. Nesse ínterim, governos foram derrubados, os mercadores financeiros se fortaleceram (apesar dos movimentos “occupy”) e as “redes de esperança” deram lugar a articulações de extrema direita, que não somente passaram a territorializar as malhas digitais, como também os espaços públicos e de visibilidade midiática e, em paralelo, apropriaram-se de diferentes esferas do poder. Esse fenômeno também ocorre no Brasil, principalmente pela proliferação das fake news.

Por aqui, estava em curso a concretização de um amplo calendário para 2020 de mobilizações políticas que abarcavam diversos segmentos sociais contrários ao governo Jair Bolsonaro, e que se pautavam pela ocupação dos espaços públicos a partir da realização de greves, atos e protestos. Contudo, houve tempo apenas para a realização das manifestações relativas ao 8 de março, Dia Internacional da Mulher, uma data bastante representativa no processo de luta contra as opressões e em favor das minorias sociais. Março de 2020 seria um mês decisivo para que aglomerações nas ruas e praças pudessem fazer ecoar as insatisfações da população contra as medidas de austeridade implementadas pelo atual governo. Todavia, após a relutância do próprio presidente em reconhecer o isolamento social como a melhor alternativa de combate à proliferação da epidemia, e indo contra as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS), manifestantes pró-governo realizam as “carreatas da morte”, fechados em seus veículos. Por outro lado, os “panelaços” e gritos de “Fora, Bolsonaro!” ainda são ouvidos em diversas cidades durante os pronunciamentos do presidente sobre a epidemia. São manifestações possíveis de repúdio à sua inoperância e a um tipo de discurso contrário à ciência, e que tem colocado a população em risco permanente.

A pandemia do Coronavírus também explicitou sobremaneira as contradições do capitalismo e deixou entrever o modo como opera a divisão social do trabalho e as desigualdades sociais. Nesse momento de isolamento social, muitos podem permanecer num home office mantendo sua renda, enquanto uma grande parte da população continua obrigada a usar o transporte público diariamente para trabalhar. Ambulantes e autônomos de baixa renda deixaram de obter seu sustento, e pessoas em situação de rua se tornaram ainda mais vulneráveis. O mundo do trabalho, portanto, passou a ser dividido entre aqueles que podem ficar em casa (pelo tipo de trabalho, por serem assalariados e por ter garantias sociais – ainda não totalmente retiradas) e uma “nova” classe trabalhadora, que não possui benefícios sociais (trabalho informal) e que num futuro próximo podem ser tornar desempregados por conta da crise econômica.

Com relação à precarização das cidades, no Brasil, o déficit habitacional, a falta de saneamento básico, a precarização da saúde e um sistema de transporte público deficiente são reflexos das políticas neoliberais colocadas em prática durante quatro décadas nos continentes Americano (aqui, inclui-se os Estados Unidos, por exemplo) e também no Europeu. Novamente, é a população mais pobre que sofre um maior impacto por conta das aglomerações necessárias para suas atividades do dia a dia e do sobreviver. Assim, investimentos devem ser direcionados para corrigir as desigualdades sociais e demográficas de forma estrutural e não somente conjuntural. A resolução de problemas agravados por décadas poderiam ter minimizado o impacto desta pandemia e de outras que poderão surgir.

Por fim, cabe ressaltar que no Brasil, a despeito de políticas públicas, vimos emergir em meio à pandemia do Coronavírus muitas redes de solidariedade com vistas à mitigação de danos sociais, principalmente em áreas mais pobres das cidades. Diversas ações mobilizam vizinhos, famílias, colegas de trabalho, artistas, movimentos sociais e de bairro, em busca de recursos materiais para serem redistribuídos às populações mais carentes. Neste aspecto, como bem afirmou o filósofo Slavoj Zizek (no texto Um golpe como o de “Kill Bill” no capitalismo), é evidente a “tremenda ironia de que o que nos impulsiona a unir e a defender a solidariedade global se manifesta diariamente através de imposições rígidas para evitar a proximidade e o contato ou mesmo o auto-isolamento”.

1. Daniela Zanetti – Doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas; professora do Departamento de Comunicação Social da UFES e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Territorialidades.
2. Adriana Fiorotti Campos – Doutora em Planejamento Energético; professora do Departamento de Administração da UFES, do Programa de Pós-Graduação em Gestão Pública e do Programa de Pós-Graduação em Engenharia e Desenvolvimento Sustentável.

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