“Texto-testemunho” denuncia adoecimento profissional

O relato “de uma professora burnoutada” é da docente do Ifes, Deane Monteiro Vieira Costa.

“Da minha vivência em décadas como professora e militante por uma educação pública, gratuita e de qualidade em meu país, cheguei ao colapso! Não aguento ver crianças e jovens nas cidades brasileiras nas ruas, pelo aumento da pobreza neste governo, sem estarem vivendo o tempo da escola. Contudo, não tenho mais força emocional para lutar pela universalização escolar em meu país. Não posso mais ouvir o barulho da escola, as vozes demagogas que usam o jargão “que a solução do Brasil é a educação” para despistar a prevalência dos interesses pessoais em detrimento dos sociais. Não consigo mais abrir o e-mail institucional cheio de cobranças e de reuniões desnecessárias. Perdi o encanto pelo interior da sala de aula com o seu milagre na construção dos saberes, pelo excesso de burocratização e de comandos em minha profissão. Dito isso, informo que não tenho vergonha do meu adoecimento pela intensidade de tais pressões”, traz trecho do livro “O lugar que o trabalho ocupa na vida das professoras no Brasil: texto-testemunho de uma professora burnoutada”.

A obra, publicada pela “editora NarraTiana”, um selo de produção criado pela professora doutora Deane Monteiro Vieira Costa, leva o nome de sua prática matinal em passar para o papel o combate diário para vencer a depressão, a síndrome do pânico, a ideação suicida e a bipolaridade. Tais adoecimentos são acompanhados por profissionais da psiquiatria e da psicologia, que acreditam que o sofrimento da professora foi gatilhado pelas pressões ocupacionais no exercício da docência.

 Por conta dos 720 dias de afastamento com o mesmo CID (11), a professora Deane precisou encarar a aposentadoria imposta pela Reforma da Previdência (Emenda Constitucional nº 103, de 2019). Diante do fato inesperado, a professora organizou junto à rede de apoio (terapeutas, médicos, família e alguns amigos), a possibilidade de produzir sua última aula, como símbolo necessário para o fechamento de um ciclo humano, no caso o profissional.

O livro é a leitura de despedida da profissão, mas, não só isso. Deane tinha uma preocupação com as professoras que ficaram e as que ainda chegarão, aos ambientes escolares para realizar suas atividades educacionais e outras práticas tão próprias do professorado.

Essas rotinas envolvem a relação interpessoal direta e intensa com os seus educandos e suas famílias, com seus pares de profissão, com os seus gestores, e com a constante ação das Secretarias e Ministério, que são os agentes responsáveis pela criação e regulamentação das leis municipais, estaduais e federais. Além da produção de programas e das diversas formações continuadas e de outras tantas atribuições que marcam o corpo e alma do docente. “É curioso, notar nesses espaços de poder (secretarias e Ministério) a ausência de preocupação com a saúde dos trabalhadores da educação”, destaca.

Vídeo. Com todas essas inquietações, a docente dedicou a sua última aula, postada no Youtube, no dia dos professores, intitulada “Texto-testemunho de uma professora burnoutada”:

 Para todas as mães,
Para todas as mulheres,
Para todas as minhas ancestrais,
Para todas as professoras,
Para todas as pessoas que experienciaram, de alguma maneira, o
convívio com a depressão e a Síndrome de Burnout.

O set de filmagem do vídeo foi o Teatro Sônia Cabral, no Centro de Vitória (ES), tendo a professora Deane de frente para a câmara e de costas para a plateia, lendo o seu texto-testemunho, escrito em suas noites de insônia. Antes da gravação, foi preciso que a professora intensificasse sua terapia, conversas de pé de ouvido com sua família e com alguns amigos, para fortalecer sua pequena rede de apoio, em virtude das diversas reações desencadeadas por sua nova luta: “a da exigência da construção de políticas de reparação em saúde mental com as professoras adoecidas em afastamento e com as que insistem que darão conta até os 60 anos, mas que sempre estão com sintomas de adoecimento profissional, abrandados pela medicalização que não cura a dor ocasionada pelo desrespeito social por ser educadora”.

Outros aspectos são citados no vídeo pela professora Deane, como: “Preenchimento do currículo lattes como moeda de troca, perda da autonomia e da personalização do meu trabalho educacional fizeram minha cabeça ‘pifar’. Tudo isso somado às políticas educacionais de desvalorização da atuação da docência”, diz. Ela destaca que já não existia vida própria, pois havia ainda uma auto exigência por ser sempre boa professora e bem avaliada pelos alunos. “Queria contribuir para a excelência da educação pública o tempo todo”.

Para ela, quando um trabalhador desenvolve a Síndrome de Burnout é um sinal de que há toxicidade no ambiente de trabalho, mas a narrativa tende a culpar a trabalhadora e o trabalhador. A professora também chama atenção especialmente para as mulheres. “Quantas professoras neste exato momento estão se culpando por estarem doentes, isoladas e depressivas e jogam sobre si o peso da desistência profissional?”, indagou.

“É de suma importância alertar as pessoas que sofrem de distúrbios psíquicos por conta das exigências profissionais supra-humanas, para que procurem ajuda médica, psicológica, junto ao apoio social de seus familiares e amigos”, frisa, acrescentando que, para além disso, é necessário exigir a produção de políticas sociais que garantam a reparação da saúde mental de todos os profissionais que sofrem da Síndrome de Burnout, em especial às educadoras adoecidas no país.

Repercussão. Até o momento, o vídeo tem mais de quatro mil visualizações e especialmente as mulheres professoras se reconhecem no relato de Deane. “Me sinto exatamente com tudo que foi descrito por seu texto. É lamentável nossa situação, visto que quando o encanto na profissão acaba, deixamos de viver condições mentais humanas” registra um dos comentários.

Perda da renda. Sobre a aposentadoria de Deane, é importante frisar que conforme a Lei nº 8.112/1990 – artigo 188, o servidor que permanecer de licença para tratamento de saúde por mais de 24 meses (720 dias, aproximadamente) de forma ininterrupta e não tiver condições de retornar às atividades ou de ser readaptado, a perícia médica deverá reconhecer a incapacidade dele para o trabalho.

Depois de aposentada, a professora obrigatoriamente passa por avaliações periódicas (a cada dois anos até que ela complete 60 anos de idade) para verificação da continuidade das condições de saúde que ensejaram a concessão da aposentadoria, o que passou a constar expressamente no artigo 40, §1º, I, da Constituição Federal, a partir da Reforma da Previdência de 2019.

É preciso ressaltar que a aposentadoria por invalidez, que é o caso da docente, reduz expressivamente o ordenado. “É uma incoerência. Justo quando aumentaram as minhas despesas com o tratamento de saúde?”, realçou indignada.

Escrita terapêutica. Hoje Deane se entende como uma mulher cearense que vive por mais de 40 anos no estado do Espírito Santo, mãe do Rafael, ex-professora, e escritora marginal porque “abusa da primeira pessoa do singular para construir as suas poesias terapêuticas”.

 Ela ainda gosta de destacar para os seus leitores, que “os seus textos vão para o papel como eu os imagino, às vezes sem pontuação ou qualquer outra adequação da norma culta, pois o objetivo principal é dar vazão aos meus sentimentos”.

Ao todo já são 9 livros virtuais que podem ser encontrados no perfil do instagram @dor_arte_profa, mas o seu preferido é “A beira do Berro: cem narrativas terapêuticas por Tiana. Isso se deve porque foi graças ao exercício da escrita diária do livro, que a professora não foi parar na estatística dos casos de suicídios. Por isso, segundo ela, foi necessário criar um alter ego, Tiana, para extravasar o sentimento de fracasso por estar distante de sua profissão e por perceber que não seria possível o retorno devido à mudança radical de sua rotina por conta do adoecimento, medicalização e fragilidade psicológica. Assim, é o “outro eu” da professora Deane, o que dá liberdade para que ela revele suas memórias, sem véu ou máscaras.

Saúde mental na Ufes. O contexto de adoecimento que levou a docente colapsar também  está presente nos relatos da pesquisa  “Percepções Sobre o Trabalho/Ensino Remoto e Saúde na Pandemia”. Elaborado pela Comissão de Acompanhamento ao Trabalho/Ensino Remoto na Ufes, com a participação de professoras/es de diferentes Centros e Departamentos da universidade e também por diretoras da Adufes, o documento aponta o aprofundamento do adoecimento psíquico e físico da categoria.

Conforme dados, 45% das/os docentes que preencheram o questionário sinalizaram adoecimento psíquico e 79% estão trabalhando de oito a dez ou mais de dez horas diárias. Outro dado relevante é que 84% das/os participantes afirmaram que o trabalho remoto intensificou as atividades laborais. Além disso, 71% de 628 respondentes disseram que as atividades domésticas aumentaram durante a pandemia, dificultando as atividades profissionais e gerando maior sobrecarga.

Papel dos sindicatos. No vídeo, Deane convoca os sindicatos a “assumir de vez seus objetivos prioritários com a categoria profissional que os mantêm, além de sensibilizar a sociedade sobre a importância de uma professora com saúde, bem paga e com uma formação profissional inicial sólida” que lhe possibilite um status compatível com o quanto ela estuda, lê e escreve para exercer sua profissão”.

Para a presidenta da Adufes, Ana Carolina Galvão, o relato de Deane é facilmente identificado em outras/os professoras/es, dos diferentes níveis de ensino. “Todos os dias recebemos no sindicato mensagens de docentes que atravessam as mesmas dificuldades e que muitas vezes se sentem num beco sem saída”, afirma. No entanto, Ana destaca que é preciso ir além da identificação do quadro de saúde. Segundo ela, enfrentar o problema requer a denúncia sobre as condições de trabalho que estão adoecendo as pessoas “e muitas vezes o professor não quer se expor, seja por vergonha, medo de perseguição ou mesmo por não perceber a gravidade do caso”.

Um exemplo que Ana apresenta é baseado na pesquisa da Adufes. Se por um lado 72% das/os docentes informam problemas ergonômicos; 45% registra adoecimento psíquico, entre outras diversas situações de saúde física e psicológica vivenciadas durante o trabalho remoto, por outro lado, 95% afirma que providenciou por conta própria suas ferramentas laborais e somente 5,7% se afastaram do trabalho. “Ou seja, mesmo com todo o esgotamento e falta de condições, as pessoas se submeteram a continuar trabalhando de forma insalubre”, enfatiza Ana.

A presidenta da Adufes ressalta que é preciso trabalhar na direção da formação política da categoria, “para que as pessoas compreendam que essa situação é parte de todo um sistema de controle, exploração e expropriação da vida da classe trabalhadora e que não vamos conseguir resolver essas questões de forma isolada e individualizada” assinala Ana. Por outro lado, ela reafirma a posição da Adufes de continuar a lutar pelas condições de trabalho das/os professoras/es de forma coletiva, mas também atendendo as especificidades individuais de cada caso que seja trazido ao sindicato.

“O texto de Deane é um material muito importante para nós. É muito mais que um texto-testemunho. É um texto-grito-de-alerta ou um texto-coragem”, finaliza Ana.

Adufes