Crentes e descrentes: eleições presidenciais no ES

Tornou-se comum, em comentários sobre o Espírito Santo, afirmar que seu eleitorado é conservador. Isso justificaria, por exemplo, o esforço do atual governador, Renato Casagrande (PSB), em se afastar do PT. Vejamos os dados de primeiro turno (sempre considerando votos válidos).

Em 1989, Collor, candidato da direita, teve 39,62%, enquanto Lula, pela esquerda, ficou com 22,39%. Em 1994 e 1998, o pleito foi marcado pelo Plano Real e beneficiou Fernando Henrique Cardoso (PSDB) no país todo. Em 94, Lula teve 23,44%. Em 98, 20,96%. Nesta fase, o confronto entre direita (Collor) e esquerda (Lula) foi substituído por uma nova conformação do campo político. O PSDB assumiu a direção uma coalizão de centro-direita, na qual o discurso neoliberal passou a dar o tom do projeto político, enquanto o PT venceu a disputa com o PDT pela hegemonia à esquerda e, ao mesmo tempo, se desradicalizou. E a conjuntura passou a ser de baixa polarização ideológica. Em 2002, o Plano Real perdeu a capacidade de sustentar a vitória do PSDB no primeiro turno. Ou seja, o debate político-programático voltou a pesar. Na ocasião, uma novidade importante foi o lançamento do nome de Garotinho, pelo PDT. Ele buscou unir sua condição de evangélico com o caráter progressista. Qual foi o efeito de tudo isso no ES? Lula teve 44,52%. Garotinho teve 27,05% e Serra (PSDB) teve 20,76%. No estado, o PT dobrou sua média anterior de 22%, ficando em primeiro lugar. O deslocamento do partido para o centro, com certeza teve papel nisso, além do desgaste do governo do PSDB. Mas o voto orientado por lideranças religiosas para Garotinho mostrou ser uma novidade, de tal monta que superou a candidatura de centro-direita.

Em 2006, se dependesse só do ES, Lula teria sido eleito no primeiro turno, pois teve 52,97%, contra 37,15% de Alckmin (PSDB). Logicamente, a aprovação de seu governo no estado teve grande relevância e o escândalo do mensalão, do ano anterior, impactou pouco, pois o que pesou mais foi a avaliação do governo. A seguir, em 2010 e 2014, a divisão de 2002 retornou, graças à candidatura de Marina Silva (pelo PV, depois pelo PSB). Em 2010, Dilma teve 37,25%, Serra obteve 35,44% e Marina ficou com 26,26%. Em 2014, pela primeira vez desde 2002, o PT não ficou em primeiro lugar: Aécio recebeu 34,53%, Dilma ganhou 32,58% e Marina obteve 29,73%.
Em 2010, no segundo turno, Serra conseguiu passar Dilma, ficando com 50,83% contra 49,17% da então presidenta. Foi um resultado apertado. Em 2014, Aécio ficou com 53,78% contra 46,22% de Dilma. Em 2010, a diferença dela com Serra no segundo turno foi de 1,66%. Em 2014, contra Aécio, foi de 7,56%. A questão aí é interessante, pois, em 2010, a avaliação de Lula era muito alta. Mesmo assim, nos dois pleitos disputados por Dilma, sua média de votos foi de 35%, a mesma dos candidatos do PSDB. Já Marina teve média de 28%. O PT foi caindo no ES antes de junho de 2013, mesmo com a boa avaliação de Lula em 2010. O voto evangélico em Marina contribuiu para isso.
Em 2018 e 2022, Bolsonaro conseguiu deslocar o PSDB como líder da coalizão de centro-direita. Os temas conservadores passaram a ditar o discurso deste bloco político. A conjuntura política passou a ser de alta polarização ideológica, beneficiando a direita. Este processo afetou todo o campo político e também o religioso. O voto capixaba em Garotinho e Marina se deu à favor de nomes que tinham posições de certa moderação política. A partir de 2018, Bolsonaro se tornou herdeiro dos votos do PSDB e conquistou os evangélicos, ao mesmo tempo em que se beneficiou de sua radicalização pela direita. Em 2018, ele teve 54,76%, contra 24,20% de Haddad. Agora, em 2022, o atual presidente amealhou 52,23% contra 40,40% de Lula. O PT teve uma fase com média de 22% (89 a 98), passou para 43% (anos Lula), caiu para 35% (anos Dilma). Em 2014, ficou próximo do seu solo histórico no estado, com os 24% de Haddad. Todavia, agora, quatro anos depois, Bolsonaro ficou bem próximo do resultado de 2018, enquanto Lula obteve um número bem próximo de sua média nos dois mandatos de presidente.

Na configuração anterior do campo político, o PT estava à esquerda, o PSDB estava à direita e alguma força (PDT, PV, PSB) tentava se colocar ao centro. O debate se dava em termos do desenvolvimento econômico e social. De forma bem grosseira, o PT defendia o Welfare State Keynesiano, enquanto o PSDB defendia o Estado Neoliberal. Temas relacionados às funções repressivas do Estado (Segurança Pública, corrupção, supostos ataques “comunistas” à liberdade, pauta conservadora) ficavam à margem. Alimentavam disputas por outros cargos e eram usados de forma instrumental pelo PSDB nas eleições, sendo abandonado depois. Tudo isso tinha a ver com a conjuntura de baixa polarização ideológica e com o comportamento dos atores. PT e PSDB precisavam se contrapor para que o eleitorado prestasse atenção aos temas que propunham ao debate.

A Lava Jato provocou estragos ao PT e ao PSDB, que perdeu suas candidaturas naturais à presidência em 2018 (Aécio Neves e José Serra). Mais ainda, o PSDB perdeu a capacidade de sustentar o seu projeto na arena pública. Com isso, o PT ficou “falando sozinho”. O espaço deixado pelo PSDB foi ocupado por Bolsonaro nos termos da extrema direita. Sua coalizão de governo é neoliberal em políticas públicas, mas o foco de seu discurso está nas funções repressivas do Estado: há algum tipo de inimigo que tem que ser combatido pela força, mesmo que pelo cidadão armado, curiosamente usurpando o monopólio legal da força.

Quando o campo político se encontrava em sua forma anterior, a “terceira via”, ou seja, o voto orientado por lideranças evangélicas capixabas, conseguiu um espaço significativo. Quando o campo se reconfigurou, o bloco conservador e o evangélico se unificaram em torno de Bolsonaro. Ao se instalar na presidência, este se manteve em campanha permanente e sua base de extrema direita ficou ativa no estado, nas ruas, na internet e por meio de lideranças que se radicalizaram no processo (Manato, Capitão Assumção, Magno Malta, etc.). Em que pese o fato do governo Bolsonaro não ter realizações a mostrar no ES, para o bloco que vota no presidente, isto é indiferente, pois ele não é atraído para temáticas relacionadas ao desenvolvimento econômico e social. Ao mesmo tempo, a diferença de votos entre Haddad e Lula entre 2018 e 2022, além do fato de que o segundo possui maior volume de capital simbólico acumulado que o primeiro, mostra que há um contingente disposto a considerar os resultados concretos de políticas públicas, apostando no PT como o caminho capaz de resolver problemas neste campo.

As primeiras reações dos setores progressistas no início do segundo turno estão focadas em desmentir fake news que tematizam a pauta da extrema direita. Qual é o problema desta estratégia discursiva? É que ela não reproduz a dinâmica de dois pólos dizendo coisas distintas sobre o mesmo assunto. É isso que diminui o custo de decisão para o eleitorado, que permite que ele perceba as diferenças entre as candidaturas. A direita dita os temas e a esquerda os desmentem. Para quem já está convencido, por exemplo, que a família tradicional estaria ameaçada por um suposto perigo do “retorno do aborto”, desmentir a notícia não tem efeito. Há uma diferença clara entre ser favorável e ser contrário ao aborto, como nos EUA e outros países, com posições políticas expressas. Assim, a oposição ao bolsonarismo deve escolher entre: a) assumir a pauta progressista em costumes, a defesa da legalização das drogas em segurança pública e medidas não repressivas de combate à corrupção (fim dos cargos comissionados, transparência radical de dados, fortíssimo controle do capital financeiro, etc); b) deslocar os termos do debate para o desenvolvimento econômico e social. É fácil notar que a opção tomada pela campanha do PT foi a segunda, mas a capacidade da direita em impor a agenda do debate o está atraindo para uma armadilha.

No plano nacional, Lula ficou com 48,4% e Bolsonaro com 43,2%. É uma distância de 5,3 pontos para o PT, enquanto, no ES, são 11,83 pontos para o atual presidente. Ou seja, é mais que o dobro. A figura de Lula, diante do mau desempenho do governo Bolsonaro, conseguiu uma proporção razoável no ES. Mas a solidez do bloco conservador no estado é tão grande que os resultados concretos não pesaram.

A estratégia que apontei acima na letra “a” tem mais a ver, em parte, com pautas defendidas pelo PSOL. Em 2022, este partido optou para se aliar ao PT e ficar sob sua hegemonia. Se o PT vencer o pleito nacional, o bloco conservador vai para a oposição. Se um governo Lula/Alckmin não tiver bom desempenho e esta oposição se mantiver unida, a direita poderá voltar ao poder em 2026, sem precisar discutir, de novo, a natureza do Estado. A estratégia da letra “b” dependeria de um crescimento e autonomização do PSOL com relação ao PT, criando um verdadeiro confronto com a pauta de costumes e com medidas repressivas em políticas públicas. Os setores progressistas, porém, resolveram temer o peso do conservadorismo e negociaram uma suspensão de seus temas mais radicais em troca da “democracia”, numa ampla aliança, da direita à esquerda, medida pela figura de Lula. No primeiro turno, no plano nacional, foi suficiente para ficar em primeiro, sendo incerto se isso vai garantir a vitória no segundo. No ES, não funcionou. O discurso da pauta econômica e social tem espaço no estado, mas não suficiente para ficar em primeiro lugar.

A direita capixaba já se unificou, enquanto o governador Casagrande, temendo perder no segundo turno, não fará campanha para Lula. Tentar diálogo com lideranças evangélicas ou outras do polo conservador (operadores da segurança pública, empresariado) para controlar o ataque a Lula é inútil. Casagrande estaria em melhor posição para tanto, mas não o fará. Outra liderança progressista, o prefeito da Serra, Sérgio Vidigal (PDT), poderia tentar algo semelhante. Seu partido fechou com Lula, mas é significativo que vários de seus ex-aliados (Manto, Audifax Barcelos, Magno Malta) tenham se deslocado para a direita. O que resta é entrar numa disputa pelas redes sociais que funciona como diálogo de surdos. Só é suscetível ao desmonte de fake news da direita quem está disposto a não concordar com elas.

Considerando tudo isso, no ES, a melhor estratégia para a campanha de Lula seria a de reforçar os seus termos. Seria o caso de insistir nos resultados concretos que governos do PT trouxeram em termos econômicos e sociais, numa linguagem adequada aos novos meios de comunicação. Entre eles:

1) Em 2003, o governo do PT negociou royalties de petróleo com o ES, o que permitiu que o estado saísse da situação de falência das contas públicas.
2) O PT reorientou a política econômica do país. Interrompeu o processo de privatização do sistema Petrobras e levou a empresa a implantar uma política de compras nacionais e de pesquisa. As compras fortalecerem várias empresas do ES, que se tornaram fornecedoras.
3) A Petrobras descobriu o pré-sal graças a uma determinação de política econômica do PT. Não foi um desdobramento normal do seu negócio. E a pesquisa de depósitos no mar do ES também foi estimulada. A exploração do pré e pós-sal no ES aumentou em muito o pagamento de royalties, que beneficiou o governo do estado e várias prefeituras.
4) A exploração de petróleo e de gás no mar do ES criou um grande volume de empregos bem remunerados, o que repercutiu na economia como um todo. A Petrobras investiu na formação de um sistema de processamento e distribuição de gás, o que não teria acontecido sem decisão política. Se há pessoas com gás em casa, é por conta de política do PT.
5) O PT aumentou sua participação acionária na Vale e obrigou a empresa a fazer investimentos no Brasil, o que beneficiou o ES.
6) A política de internalização do sistema produtivo levou à instalação de um estaleiro (Jurong) em Aracruz. A empresa não veio à toa.
7) Em Saúde Pública, o PT implantou as UPAS, o SAMU e o Mais Médicos. Não se toca no importante papel que médicos cubanos tiveram no estado e o impacto que isso causou com sua saída por decisão do governo Bolsonaro.
8) Governos do PT deram fortes incentivos à agricultura familiar, que tem grande peso no ES. O compromisso com esta pauta era tão grande que Dilma se arriscou com o plano Safra, que foi usado para inventar (“pedaladas fiscais”) desculpa para seu impeachment.
9) O PT criou o Instituto Federal do ES (IFES) e seus vários campi. Também reverteu a política de falta de investimentos do PSDB na UFES, incluindo a política de cotas. O Prouni expandiu a rede de faculdades particulares.

Há outros pontos que poderiam ser destacados. É claro que várias críticas podem ser feitas, mas o fato é que os governos de Temer e Bolsonaro tomaram decisões que reverteram muitos destes aspectos. O acordo de acionistas da Vale foi alterado em 2017 (sem oposição de Bolsonaro), levando a empresa a deixar de investir prioritariamente no país (e no ES). Bolsonaro manteve a mudança de controle acionário da Petrobras, o que levou a uma queda enorme do investimento da empresa no ES, além da política absurda de aumento do preço da gasolina. O setor de petróleo e gás, com sua capacidade de movimentar a economia local, foi reduzido por decisão da empresa, apoiada e orientada pelo governo federal, com foco na lucratividade de suas ações. Os investimentos em políticas públicas, no geral, caíram de forma abrupta, afetando o desempenho de toda a área social. A desaceleração da economia, por conta do neoliberalismo de Temer/Bolsonaro, afetou o sistema portuário do ES, pois a movimentação de cargas caiu nas exportações e importações. Tudo isso gerou desemprego, queda de renda, fechamento de empresas, fornecedores, etc.

Enfim, a pauta dos resultados, da comparação de governos tem meios para beneficiar a candidatura de Lula no ES. Por isso mesmo, a direita está fazendo de tudo para que ela não apareça. Os “crentes” estão sendo mobilizados para comprar briga com os “descrentes”. A armadilha está preparada. Pessoas religiosas não são, obrigatoriamente, de extrema direita. Foram levadas a isso por ação política competente, que nos empurra, cada vez mais, para uma encruzilhada.

*André Ricardo Valle Vasco Pereira – Professor do Departamento de História da UFES, Doutor em Ciência Política.

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