Manifesto dos professores e pesquisadores que atuam no ES sobre o #protestoES
Esta petição será entregue para: Governador do Espírito Santo Renato Casagrande
Para nós, professores e pesquisadores, o dia 17 de junho de 2013 representa um marco histórico para a sociedade civil do Espírito Santo. Cerca de 30 mil pessoas romperam seus medos privados, ocuparam o espaço público e atravessaram a Terceira Ponte rumo à residência oficial do governador do Espírito Santo, Renato Casagrande, em Vila Velha. O primeiro Ato “Não é por 20 centavos, mas por direitos” alterou o imaginário que tínhamos daquela ponte: de um símbolo da imobilidade e espoliação urbana, a ponte tornava-se o ícone de uma ocupação popular que pedia libertação de práticas políticas viciadas do sistema representativo dessa nossa democracia local. Milhares de pessoas, na porta da bucólica residência da Praia da Costa, mandavam um sinal: “nós existimos!”.
O Segundo Ato, em 20 de junho, mobilizou 100 mil pessoas, que definiam como locus de manifestação o Tribunal de Justiça do Espírito Santo, símbolo até pouco tempo do maior escândalo do Poder Judiciário capixaba: a Operação Naufrágio. O Espírito Santo vive, até hoje, um estado de ebulição de grupos sociais, de matizes políticas e sociais distintas, com reivindicações difusas, mas muito concretas. Numa estrutura política que privilegia muito mais as relações entre políticos e empresas, em práticas de alimentação mútua de temas e interesses, o cidadão vê a representação política distante de suas demandas sociais. E, na rua, faz-se notar ao demonstrar que a desigualdade social é a maior das corrupções desse sistema político.
No Terceiro Ato, os destinos finais das manifestações foram a Prefeitura de Vitória e a Rede Gazeta. Agora com uma composição política nova: a Assembleia Popular. Em média 500 pessoas, nos finais de semana, deliberam ainda atualmente suas reivindicações. Tudo de modo aberto e direto. A marcha, com 10 mil pessoas, colocava na mesa inúmeras pautas para a negociação com o Executivo e o Legislativo estaduais. Mas o Executivo se manteve reticente, afirmando que o movimento não tinha líderes e apresentava pautas em excesso. O governador se ausentou da mesa. E destinou a tarefa de receber os manifestantes a um grupo de tecnocratas do segundo escalão. Em seguida, os ativistas ocuparam a Assembleia Legislativa. Queriam que o projeto de lei que colocava fim ao pedágio da Terceira Ponte fosse votado. Uma semana de negociação. Não havia representantes do governo. Este, ao contrário, articulou sua base legislativa e arquivou o projeto.
Nova manifestação, no dia 19 de julho. Mais de cinco mil pessoas, às 6h da manhã, marcham da Assembleia Legislativa até o Palácio Anchieta. Entram na avenida Jerônimo Monteiro sob aplausos e papel picado. No Palácio, não há ninguém para receber as suas reivindicações. Como representantes do governo só o Batalhão de Missões Especiais, que passa a atuar com o uso de violência absolutamente desmedida, intensificando as reações por parte da manifestação, invertendo por completo sua função de preservar a vida das pessoas e tratando moradores e manifestantes indiscriminadamente como criminosos. O resultado: mais de 60 prisões, sendo a maioria realizada de forma arbitrária e ilegal, com acusações sem provas de sua materialidade e autoria.
Em um mês de protestos temos algumas narrativas construídas. Uma delas é a narrativa da multidão conectada nas redes sociais, a outra é aquela produzida por alguns veículos tradicionais que descrevem a realidade a partir de um viés de análise que criminaliza a ação dos movimentos sociais. A primeira aponta para um governo que não adota medidas concretas de respostas aos anseios das ruas; a segunda acusa as manifestações de acolherem indivíduos que depredam os patrimônios privado e público e, portanto, não querem o diálogo. O único ente do Poder Executivo presente é a Polícia Militar.
Temos a democracia por princípio. E isto nos coloca terminantemente contrários a todo e qualquer tipo de criminalização dos movimentos sociais, acusando-os com um discurso policial, com rótulos usados pelo Estado que caracteriza manifestantes como criminosos. Lutar por justiça, radicalização da democracia, transparência na produção de informações e compartilhar estratégias de construção de políticas do comum não pode ser considerado crime, mas sim a tentativa de superação de uma ordem que legitima o poder decisório nas mãos de poucos.
Não é recente, mas recorrente, o uso do poder da polícia, por parte do Governo do Estado, de forma desmedida, com alto grau de violência e desrespeito aos direitos das pessoas de mobilizar-se e fazer reivindicações nos espaços públicos. Lembremo-nos das bombas explodidas no campus da Ufes em junho de 2011. Esta violência policial, ao contrário do que afirmam – que teria como foco o controle da “destruição do patrimônio (público e privado)” por parte dos protestos -, tem sim incitado os “excessos” e intensificado o medo e a insegurança na população. O fechamento dos poderes constituídos à negociação com os atores políticos das ruas – cuja pior imagem é aquela da Assembleia Legislativa bloqueada por dezenas de policiais, no dia 15 de julho, enquanto funcionários comissionados ocupavam o plenário e, mudos, observavam seus chefes deliberarem sobre a ordem do dia – só aprofunda um estado de revolta social.
Para nós, professores, é inconcebível clamar por pacifismo e reclamar das ações contra o patrimônio público e privado em um contexto social, como o que encontramos no Espírito Santo, marcado pelos mais altos índices de violência contra a mulher e contra a juventude, além de um dos maiores níveis de homicídios do país. O Estado deve buscar compreender que essas ações não ocorrem sem sentido, de forma aleatória. Expressam a existência de um pensamento crítico e inconformado com um contexto de violência permanente contra as próprias pessoas. Não é à toa que um dos cartazes de uma das manifestações afirmava: “a polícia que bate nas ruas é a mesma mata nas favelas”.
E somado a isto, sobram até ameaças para o trabalho intelectual dos professores, feitas por um jornalista, que, em seu Twitter, declarou: “… já estamos monitorando os professores que incitam e estimulam a violência. Falta pouco!”. Essa ameaça é uma forma de ilação: querem nos colocar como intelectuais da incitação da violência, quando esta é oriunda de um conjunto de indignações ainda não escutadas e do uso desmedido da força policial por parte do executivo estadual.
Os protestos e as mobilizações, é importante salientar, buscam ampliar direitos sociais e políticos. E mais do que isto, retiram do piloto automático acordos formais e informais realizados por uma elite política e econômica que faz dos partidos estruturas mais de comando do que de construção coletiva de novas agendas para as políticas públicas. É um movimento pela ampliação de direitos sociais. Veja o caso da busca pela ampliação do direito à saúde no Espírito Santo. A precariedade da atenção à saúde da população é uma marca que agride o exercício da cidadania de milhões de pessoas e está na pauta reivindicatória dos movimentos. Unidades de Saúde e hospitais públicos sucateados, privatização, precarização dos vínculos empregatícios, desmandos na gestão dos escassos recursos públicos e o desrespeito às pessoas que procuram atendimento comprometem o direito universal à saúde inscrito na Constituição brasileira. O mesmo se aplica à gestão dos serviços de saúde atualmente entregue às Organizações Não-Governamentais, serviços religiosos e terceirizados com financiamentos altíssimos pelo Estado, priorizando um sistema de saúde privado (suplementar) à gestão fortalecida do Sistema Único de Saúde (SUS).
Para nós, professores, outra pauta concreta é a gestão e planejamento das cidades e a mobilidade urbana. Os movimentos iniciados em junho de 2013 reclamam a plena participação e intervenção na deliberação sobre os destinos da cidade, ressaltando a mobilidade urbana pleiteada como direito do cidadão. Reclama-se, especificamente, dos itinerários, dos horários, da frequência, da limitação dos modais de transporte coletivo, da qualidade e inadequação do transporte coletivo, da carência dos pontos de ônibus, da falta de políticas para transportes não motorizados, dos espaços públicos tomados pelos transportes individuais. Os protestos reclamam compartilhamento do comum, que é o direito do livre circular no espaço da vida urbana. Não à toa que os manifestantes lutam por uma vida sem catraca, uma vida sem pedágio. Em três anos de governo estadual, após um período de caos urbano causado por obras simultâneas em vias cruciais ao fluxo da população pela cidade, veem-se obras paralisadas ou atrasadas que se erguem com impactos sociais e ambientais ao entorno construído. Há ainda planos que não saem da gaveta como o controvertido BRT (Bus Rapid Transit),que é o modelo de transporte coletivo escolhido para ser implantado na Região Metropolitana da Grande Vitória. Este governo, não tendo esgotado os planos encampados da gestão anterior, anuncia mais um plano estratégico de longo prazo.
Sim, há uma ampla mobilização em torno das redes, o que exige governos transparentes e que dialoguem nesses ambientes midiáticos 2.0. Há uma mudança paradigmática no modo de se produzir comunicação e cultura. Acabou, tendencialmente, qualquer possibilidade de um centro difusor de informação, típico de uma sociedade de massas. Não é a injeção de anúncios publicitários televisivos que resolverão nossa crise política. Ao contrário, perguntamos, se esses anúncios não seriam a evidência de que a relação comunicacional do Estado com a sociedade civil está presa a um modelo em que o simulacro e o espetáculo se tornaram a única ferramenta possível de diálogo público.
Essa perspectiva espetacular baseada no medo, que também se desdobra na forma como as manifestações tem sido noticiada pela grande mídia local, se choca com as centenas de testemunhos, vídeos, fotos, transmissões ao vivo e textos livres, que circulam, de modo horizontal, nas redes sociais, desmentindo o discurso estatal e midiático, com situações em que o povo é constrangido pela repressão policial. Em lugar do monopólio de uma versão oficial dos fatos, apoiamos os relatos que busquem outras reflexões e olhares sobre acontecimentos e mudanças que ainda estão em curso. Por isso, não podemos aceitar que o Estado, por meio de sua polícia, continue reprimindo aqueles que produzem estas versões independentes (não oficiais) dos acontecimentos.
Para nós, professores, é necessário e urgente a construção e proposição de novas relações de comunicação com o Estado (através da participação ampla e irrestrita da sociedade), o que passa pela democratização das verbas publicitárias (hoje concentradas em grupos familiares de mídia do Estado), recuperação da sucateada TVE, mais recursos para editais públicos de cultura e comunicação (sem que estes sejam geridos por instituições privadas, como o Sincades). São essas medidas que criam novas narrativas sobre a vida, não subsumindo esta ao simplismo do discurso da “depredação do patrimônio”, como se o Estado fosse um ente apenas para proteger coisas e mercadorias. O Estado precisa dos sujeitos coletivos para tornar-se democrático.
Nós, professores, temos como princípio para a educação que praticamos, seja em sala de aula, na condução dos trabalhos de pesquisa e extensão ou na administração das universidades e faculdades, a garantia do diálogo e do livre pensar em um paradigma democrático, plural, inclusivo e não dogmático. Não há como refutar o outro apenas pela não concordância, pelo preconceito ou pela rejeição de sua legitimidade social e política. Como professores e pesquisadores não concordamos e repudiamos a forma como o atual Governo do Estado do Espírito Santo tem se recusado a abrir diálogo com as organizações e grupos que têm ocupado as ruas para protestar por direitos e reivindicações legitimas. Somos profissionais do diálogo. Trabalhamos para que as ruas entrem pela porta da frente do Palácio Anchieta. Apoiamos as lutas sociais e as instituições democráticas!
Vitória, 22 de julho de 2013.
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