Em audiência marcada para 28 de março, organizações também devem levar à Comissão Interamericana denúncias sobre abusos judiciais, leis antimanifestações e remoções provocadas pela copa do mundo
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) colocará frente a frente, no dia 28 de março, representantes do Estado brasileiro, ativistas e vítimas de abuso policial ocorridos no país nos últimos meses. A audiência será realizada em Washington, nos Estados Unidos, onde fica a sede da Comissão, ligada à Organização dos Estados Americanos (OEA), e irá discutir as violações cometidas pelo poder público durante os protestos que vêm ocorrendo desde junho de 2013, entre outros temas.
“A ideia é também debater o cenário político atual, em que as pessoas estão protestando cada vez mais e, o Estado, respondendo de maneira cada vez mais dura”, explica Rafael Custódio, coordenador do Programa de Justiça da Conectas, uma das entidades que requisitou a audiência na CIDH. Custódio observa uma concertação “incomum” entre diferentes poderes da República, esferas de governo e partidos no sentido da repressão. “É uma aliança que está passando por cima de todo mundo, sem debate com a sociedade civil.”
Além da Conectas, que tem seus escritórios em São Paulo, outras oito organizações do país assinam a petição enviada em janeiro à CIDH: Justiça Global, Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa (Ancop), Instituto de Defensores de Direitos Humanos, Serviço de Assessoria Jurídica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Artigo 19, Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro, United Rede Internacional de Direitos Humanos e Quilombo Xis Ação Comunitária Cultural.
Após ter negado um primeiro pedido de audiência, no ano passado, remetido na esteira das jornadas de junho, a CIDH resolveu dar espaço às entidades brasileiras em seu 150º Período de Sessões, realizado entre 20 de março e 4 de abril. “Nessas ocasiões, são discutidos temas mais gerais, esperando que os debates dentro da comissão façam com que as denúncias sejam mais publicizadas e os Estados freiem um pouco sua ânsia de violar direitos”, explica Custódio. “É ainda uma oportunidade para levar o debate para o exterior.”
De acordo com a advogada Juliana Machado, membro do Comitê Popular da Copa de São Paulo, recorrer às instâncias internacionais é uma maneira de vencer as barreiras construídas pela falta de diálogo dos governos federal, estaduais e municipais. “Dentro do país não temos obtido respostas em relação à violência policial ou a outras violações”, aponta. “Apesar das promessas, o diálogo com os movimentos não ocorreu. Indo à CIDH, queremos fazer com que os governos finalmente deem respostas e deixem de criminalizar os movimentos sociais.”
A Comissão não tem poder de obrigar União, estados e municípios brasileiros a tomar providências ou modificar suas posturas em relação aos protestos, mas tem a prerrogativa de fazer recomendações ao poder público. É possível também que as denúncias resultem na apresentação de uma ação pelas entidades da sociedade civil à entidade, que pode definir pelo envio de violações à Corte Interamericana de Direitos Humanos. “Esperamos que, depois da audiência, os membros da CIDH convidem as autoridades brasileiras a agirem de outra maneira com os movimentos sociais”, revela Juliana. “Isso pode causar constrangimentos a um país que construiu uma imagem diplomática de conciliação e respeito aos direitos humanos.”
Além da pressão política, a CIDH pode ainda fazer com que representantes do Estado brasileiro se pronunciem oficialmente sobre as denúncias – o que ainda não aconteceu. Junto aos denunciantes, às vítimas de violações e aos membros da comissão, um membro do Itamaraty provavelmente assistirá ao encontro, com direito a palavra. As entidades brasileiras esperam que a colombiana Catalina Botero, relatora especial para Liberdade de Expressão, assista ao encontro. Também membro da CIDH, o brasileiro Paulo Vannuchi, ministro de Direitos Humanos no governo Lula, não deverá estar presente. A praxe da comissão é de que os integrantes não se manifestem sobre temas de seus países de origem.
A violência policial durante manifestações é o assunto principal, mas não será o único abordado na série de denúncias encaminhadas à CIDH. “Abordaremos uma série de outras formas de repressão que o Estado brasileiro vem praticando”, complementa Natália Damázio, advogada da Justiça Global, ONG que também participará da audiência. “O Brasil vem criando mecanismos de violação à liberdade de expressão e reunião, com prisões arbitrárias em massa, armas menos letais usadas de maneira irregular e até recorrendo a armas letais.”
Natália reforça a ideia de que os Três Poderes estão sintonizados na criminalização dos protestos. “Por conta disso, e pelo agravamento da situação, fizemos o pedido de audiência à CIDH. Queremos evitar novos retrocessos”, afirma, pontuando algumas medidas repressivas: publicação do manual Garantia da Lei e da Ordem, em dezembro, pelo Ministério da Defesa; Projeto de Lei do Senado nº 449/2013, que tipifica o crime de terrorismo; e um projeto a ser proposto pelo Ministério da Justiça para “regulamentar” as manifestações. “Isso sem contar as prisões para averiguação, que são inconstitucionais.”
As entidades estão finalizando um dossiê com todas as violações aos direitos humanos cometidas nos últimos meses – ou em curso no país. Tais violações abrangem as denúncias da Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa quanto às remoções forçadas feitas durante preparação para a Copa do Mundo. “Há 250 mil pessoas no país que já foram removidas ou estão ameaçadas de remoção sem qualquer garantia”, calcula Juliana. O dossiê contará ainda com evidências que comprovam a existência de mais de 200 vítimas das polícias do país durante os protestos.
* Com edição do ANDES-SN
* Foto: Rodrigo Zaim/Mídia Ninja
Fonte: RBA