Reflexos perversos da implementação da Ebserh pelo Brasil

Desde 31 de dezembro de 2010, último dia de Luiz Inácio Lula da Silva como presidente da república, a saúde e a educação públicas se veem em meio a um debate sobre como devem ser geridos os Hospitais Universitários Federais (HUs). Naquele dia, Lula assinou a Medida Provisória (MP) 520/2010, que criava a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), uma empresa público-privada que serviria para gerir todos os HUs, sob a desculpa de que os problemas dos hospitais eram apenas de gestão.

A Ebserh, porém, evidencia o que cada vez mais se confirma: um caráter privatista. Seu projeto não garante a manutenção dos HUs como hospitais escolas, onde se ensina, se pesquisa e se pratica expansão. O texto do projeto também não garante a manutenção do atendimento exclusivo pelo Sistema Único de Saúde (SUS), permitindo que os hospitais realizem consórcios com planos de saúde particulares. Por fim, a Ebserh contrata funcionários regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), e não servidores públicos, o que, em prática, ajuda a precarizar as relações de trabalho dentro dos HUs.

A MP 520 mudou de nome várias vezes, e virou lei. O governo federal passou a incitar os reitores a defenderem a adesão de seus hospitais à Ebserh, muitas vezes de maneira rápida e sem debate, outras vezes sem nem aprovar a adesão nos conselhos superiores. Para algumas universidades federais a Ebserh já é uma realidade, e a realidade é bem dura.

A Associação dos Professores da Universidade Federal do Paraná (Apufpr-SSind) realizou um levantamento sobre a situação dos HUs com Ebserh pelo país. Confira abaixo reportagens sobre a Ebserh em algumas universidades federais.

Espírito Santo
Segundo a integrante do comando local de greve do Sindicato dos Trabalhadores da Universidade Federal do Espírito Santo (Sintudes), Alvaléria Cuel, desde que a Ebserh assumiu a gestão do Hospital Universitário Cassiano Antonio de Moraes (Hucam) há problemas graves como a falta de liberação de recursos para o Hospital e de material para o atendimento dos pacientes – em alguns casos foi necessária, inclusive, a reutilização de materiais descartáveis.

“Quando a Ebserh entrou aqui tivemos um problema muito grande em relação à falta de materiais, e ainda estamos sem medicamentos. Sempre está faltando alguma coisa. O que eles justificam é que há problemas na transição, nos contratos, que o Ministério não liberou recursos e estão usando o fundo do Hospital, mas o dinheiro já chegou e para nós trabalhadores não teve mudança nenhuma”, destacou Alvaléria.

Além disso, de acordo com Alvaléria, há problemas no quadro de funcionários, visto que a contratação feita pela Empresa não supriu a necessidade de trabalhadores para atender a demanda da comunidade.

Apesar de possuir 600 vagas abertas no concurso público, entraram no Hospital pouco mais de 100 servidores. “Esse é um Hospital de alta complexidade e não funciona adequadamente por falta de funcionário, nós temos que fazer rodízio para não deixar o Hospital vazio.”

O assédio moral também é um problema presente com a gestão da Ebserh. “Há muita falta de respeito e assédio moral aqui no hospital. Nós vivemos numa insegurança e tensão total. Ficamos até desmotivados para trabalhar”, desabafou Alvaléria.

Maranhão
A pressão do governo para a imposição da Ebserh no Hospital Universitário da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) foi muito grande. “O reitor da Universidade informou que seria preso caso não o fizesse”, afirma o coordenador da Federação de Sindicatos de Trabalhadores em Educação das Universidades Brasileiras (Fasubra), Luiz Antônio de Araújo Silva.

Segundo o docente e diretor do ANDES-SN, Antônio Gonçalves Filho, com a chegada da Ebserh no Hospital Universitário, as relações entre servidores ficaram mais delicadas pelo assédio praticado pela Empresa. “A relação profissional é de assédio moral. Ou você se submete às regras ou você está fora. O médico vai ter que se submeter às metas construídas não a partir de um pacto de discussão acadêmica, mas dentro de um gabinete”, afirmou o diretor.

Além disso, o processo de ensino e aprendizagem também foi prejudicado pela imposição da lógica do capital trazida pela Ebserh. “Se eu dou minha aula prática dentro do hospital, não tem como desvincular a assistência da docência. Quando era direção da universidade, nós pactuávamos. Quem fazia docência atendia oito, quem não fazia, atendia 16 pacientes. Não existe mais isso. Querem criar uma situação que nos obrigue a sair. A lógica da empresa é melhorar a gestão, fazer mais com menos”, desabafa Gonçalves Filho.

“Isso compromete o meu processo de ensino-aprendizagem porque eu vou ter menos condições de executar os procedimentos necessários para a formação de um médico”, complementa.

Para o diretor do ANDES-SN, a formação acadêmica requer mais do que um hospital meramente de assistência. “Preciso pensar em novos recursos pedagógicos, rever minha prática docente, contribuir mais com a melhoria do projeto pedagógico do curso. Da forma que trabalhamos com a Ebserh no Hospital, eu não tenho mais tranquilidade para fazer isso.”

Piauí
Com a aprovação da Ebserh para gerir o Hospital Universitário da Universidade Federal do Piauí (UFPI), diversos problemas passaram a ocorrer. Alguns casos graves, como por exemplo, a falta de água no setor da Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) do Hospital em fevereiro de 2014, passaram a se tornar comuns.

Segundo o 1º vice-presidente da Associação dos Docentes da Universidade Federal do Piauí (Adufpi-SSind), Welter Cantanhêde da Silva, um dos principais problemas atualmente no HU é a defasagem no quadro de servidores de todas as áreas.

“Temos uma falta de pessoal muito grande aqui no Hospital, inclusive de médicos e enfermeiros. Foi feito concurso, mas não foram contratados todos os funcionários”, destacou Silva. De acordo com o dirigente, em vista da falta de profissionais capacitados e ligados à vida acadêmica a população também acaba sofrendo as consequências.

“Os funcionários contratados não têm vínculo com a Universidade e não entendem como os processos devem ser feitos. A falta de servidores impede que a gente utilize a capacidade completa do Hospital. Hoje apenas uma parte da estrutura está sendo usada, temos salas e materiais que não podem ser usados para o atendimento porque não temos gente suficiente”, afirma Silva.

“O atendimento do Hospital fica aquém da demanda. Há poucos trabalhadores em vista de problemas no concurso público”, afirma o coordenador da Fasubra, Luiz Antônio de Araújo Silva. Além disso, desde agosto de 2013 os médicos do HU cobram da Ebserh o cumprimento da legislação trabalhista por conta da empresa, melhores condições de trabalho e ampliação na capacidade de funcionamento do Hospital.

Outro problema grave é a denúncia presente no relatório do Departamento Nacional de Auditoria do SUS, do Ministério da Saúde, de que o gestor municipal do SUS em Teresina repassa mensalmente à Ebserh R$ 2 milhões, independentemente dos serviços prestados pelo Hospital.

Em contrapartida, os atendimentos realizados pelo Hospital no primeiro semestre de 2013, segundo o Sistema de Informações Ambulatoriais do SUS, correspondem a R$ 164.180,23, o que representa apenas 1,64% dos R$ 10 milhões repassados pelo SUS à empresa entre abril e agosto.

Rio Grande do Sul
Na Universidade Federal de Pelotas (UFPel), o contrato com a Ebserh foi assinado diante da justificativa de realizar a construção de um hospital universitário regional, uma antiga reivindicação dos docentes e de toda a comunidade acadêmica.

“A Ebserh aqui foi assinada no final de 2012. Temos conhecimento de que o reitor está trabalhando as escondidas para estabelecer um vínculo entre a construção de um hospital regional e a Ebserh, como se só fosse possível uma coisa se tiver a outra. Já tivemos inclusive, a informação de que o assessor do reitor está assumindo o cargo para a implantação da Empresa”, afirmou a presidente da Associação dos Docentes da Universidade Federal de Pelotas (Adufpel-SSind), Celeste dos Santos Pereira.

Segundo Celeste, o reitor da Universidade argumenta que a construção do hospital só é possível com a Ebserh, o que acaba jogando a população contra os docentes porque, como hospital regional, o atendimento pelo SUS cobriria Pelotas e toda a região.

Além disso, houve ameaças de que se não houvesse a adesão à Empresa não seriam liberados recursos e cursos seriam fechados. “Antes de assinar, pessoas, e inclusive alguns professores, venderam coisas falaciosas do tipo: se não assinar com a Ebserh vão fechar os cursos de Medicina, Enfermagem e os cursos da saúde porque não vai ter onde fazer estágio. O que é uma chantagem grosseira. Outra mentira é o governo dizer que não tem dinheiro para investir, pois todo o dinheiro que está na Ebserh é do governo”, frisa Celeste.

De acordo com a presidente, há conhecimento, mesmo que sem a divulgação oficial pela Administração da Universidade, de que o projeto do hospital que será entregue à Empresa será ainda maior do que o planejado.

“Temos um projeto da reitoria antiga de construir um hospital regional. Estamos em fase de adequação de estrutura. Porém, temos notícias de que estão arrumando mais de 40 leitos, o que faria que o hospital se tornasse de médio porte e não de pequeno. É um absurdo fazer um hospital de médio porte e entregar todo para a Ebserh”, ressaltou Celeste.

Além disso, ainda há a perspectiva de demissão dos funcionários da Fundação de Apoio Universitário (FAU) que trabalham no hospital, por conta de determinação do Tribunal de Contas da União (TCU), o que prejudicará o quadro de servidores e o atendimento à população. “A reitoria diz que não há perspectiva de contratação de pessoal, nem sequer de abertura de concurso. Mesmo não sendo a melhor ideia, a alternativa que resta seria a Ebserh”, explicou a presidente.

Outro grave problema agravado pela Ebserh é a falta de espaço para as aulas dos cursos da área da saúde. “Temos problemas de estrutura, de área física, de adequação de espaço para os estudantes. Com exceção da área médica, que é privilegiada, os outros cursos como Enfermagem, Odontologia, Nutrição, e Terapia Ocupacional têm dificuldade de conseguir salas e espaços para as aulas, para guardar material, para fazer a discussão de um caso clínico”, disse Celeste.

Já no Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM), a reitoria da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) assinou o contrato com a Ebserh alegando ser a única solução para o problema de defasagem no quadro de funcionários do Hospital.

O problema ocorreu porque o Ministério Público Federal (MPF) cobrava uma decisão da universidade, tendo em vista que o prazo de renovação do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) que permitia a contratação de funcionários terceirizados via Fundação de Apoio à Tecnologia e Ciência (Fatec) havia vencido e, portanto, a adesão precisava ser decidida sob pena de começarem a ocorrer demissões no Hospital.

Segundo a Seção Sindical dos Docentes da UFSM (Sedufsm-SSind), o então reitor colocou a Ebserh como única solução para garantir com agilidade a contratação de novos profissionais por meio da Empresa, assinando “ad referendum” o contrato sem ouvir a decisão dos conselheiros.

Entretanto, segundo a Sedufsm, mesmo com a adesão à Ebserh a situação dos servidores não foi solucionada, visto que o concurso para a contratação pela Ebserh, pelo regime celetista, já foi realizado, mas ainda não há previsão para assumirem os cargos.

Além da terceirização e da precarização geradas pela defasagem no quadro de funcionários, os pacientes também são impactados com os reflexos de superlotação e precariedade no atendimento à comunidade.

*Edição de ANDES-SN e imagem de Rafael Balbueno

 

Fonte: Apufpr-SSind