Demissão de professora escancara transfobia nas escolas

Mesmo em ambientes que deveriam primar pela educação para a tolerância e pluralidade, o preconceito de gênero ainda é realidade

O avanço conservador que impede que os planos de educação de estados e municípios prevejam as questões de gênero como tema a ser debatido em sala de aula também faz vítimas diretas do preconceito em ambientes que deveriam primar pela educação pela inclusão, tolerância e pluralidade.

No interior de São Paulo, a professora Camila Godoi foi demitida, ao mesmo tempo, de duas escolas de ensino médio, localizadas em cidades diferentes, logo após comunicar aos mantenedores dos estabelecimentos sobre sua condição de transgênera, a pessoa que tem sua identidade de gênero diferente daquela expressa no nascimento. 

Aos 43 anos, Camila vive como mulher na sua vida privada. No ambiente de trabalho, entretanto, ainda desempenhava o “papel social atribuído ao gênero masculino”, com ela própria descreve. Mas, decidida a abandonar a “vida dupla” e assumir em definitivo sua transgeneridade a partir de 2016, começou a conversar sobre o assunto com a comunidade acadêmica. 
“Tanto os professores quanto os alunos e funcionários me acolheram com todo o carinho e respeito e me apoiam plenamente. Os mantenedores da escola, porém, optaram por me demitir antes do início deste semestre letivo”, conta ela.
Camila foi demitida por e-mail do Colégio Cristão de Jundiaí, onde trabalhava há 2,5 anos. No documento, a então diretora-pedagógica (cujo nome preservado será a pedido da própria Camila) desvela o preconceito dos mantenedores que motivou a demissão.

“Era imprescindível que o sigilo desta sua condição fosse mantido junto à comunidade escolar, devido aos valores que a instituição escolheu defender quando estabeleceu o nome Cristão”, esclarece a diretora-pedagógica, que também acabou sendo demitida por fornecer à Camila a prova material da posição transfóbica da escola. 

O e-mail foi a prova utilizada por Camila para procurar uma delegacia e denunciar o crime, que agora está sendo investigado pela Polícia. Sua advogada, Gabriela Andrade, também se baseou no documento para ingressar com uma ação trabalhista em que reivindica a reintegração da professora. 
Segundo a advogada, a Constituição Federal veda demissões fundamentadas em qualquer tipo de preconceito, inclusive de gênero. Portanto, apesar do Congresso Nacional mais conservador da história recente do país não ter apreciado o projeto de lei que criminaliza a homofobia, como reivindicam os movimentos LGBTT, há instrumento legal para impedir a demissão da professora.  

Efeito cascata. No mesmo dia em que foi demitida do Colégio Cristão de Jundiaí, Camila também foi comunicada do seu desligamento involuntário do Colégio Anglo-Jacareí, onde atuava há 1,5 ano. O Anglo-Jacareí é uma instituição laica, o que indica que a religiosidade não é a fonte do preconceito de gênero. Pelo menos, não a única.

Neste caso, a justificativa foi o tradicional “corte de gastos”. Entretanto, Camila foi a única professora demitida do ensino médio. Ela havia comunicado sua transgeneridade aos mantenedores em maio passado, mas ainda não tinha discutido o assunto com a comunidade escolar. “Não dá para acreditar que as duas demissões sejam apenas coincidência”, avalia Gabriela.

“Somos todos Camila”. Engenheira química formada pela Unicamp, Camila atua no magistério há 20 anos e jamais teve sua capacidade profissional contestada. Muito pelo contrário. É bastante querida por alunos e ex-alunos que, desde que souberam das suas demissões concomitantes, organizaram a campanha “Somos todos Camila”, nas redes sociais.
É o caso de Maria Carolina Fernandes Oliveira, 19 anos, que hoje cursa Direito na UFLA, onde atua em um projeto de iniciação científica sobre feminismo. “O gênero não influencia o desempenho profissional, portanto, a menos que a escola se assuma preconceituosa e admita sua visão sexista, machista e transfóbica, não há motivo para rejeitar um profissional usando o gênero como justificativa”, afirma.
Para a futura advogada, até mesmo com sua demissão, Camila tem dado uma aula de direitos humanos para seus eternos alunos. “Todos os dias nos chocamos com as injustiças sofridas pelas minorias, e ver uma pessoa próxima e tão querida sofrer injustiças como a Camila sofreu e está sofrendo me faz querer lutar (e ganhar) uma batalha em que os únicos que podem perder são os socialmente marginalizados e excluídos. Essa experiência só me deu ainda mais forças para batalhar por direitos iguais, por respeito e por solidariedade” , afirmou à Carta Maior.

Organizações de defesa dos direitos LGBTT também têm aderido à campanha e se somado à defesa de Camila. O assunto, porém, gera debates acalorados nas redes sociais, onde, mais do que na vida real, os conservadores se sentem a vontade para desvelar seus preconceitos impunemente.

Mesmo ciente de que sua reação ao preconceito virá a estimular outras vítimas da homofobia a lutarem por seus direitos, Camila se recusa a encarnar o papel de heroína. “Não quero de maneira alguma passar a impressão de que sou uma heroína. Tenho consciência de que tenho privilégios de cor e de classe”, afirma ela.

Fonte: Carta Maior