Artistas, professores universitários, ativistas e militantes sociais alertam: ‘o livre direito à manifestação está em grande risco hoje no Brasil’. Em repúdio aos sucessivos e truculentos episódios de repressão policial contra manifestantes nas ruas, eles lançam o Mani-f-esta livre!, denunciando ameaças em curso e propondo uma série garantias ao livre exercício da manifestação popular. “O manifesto pretende expressar a voz da esquerda das ruas”, afirma o sociólogo Jean Tible, um dos signatários do documento. “Partindo da perspectiva de que o cidadão faz política no seu cotidiano, e não apenas no momento das eleições, nós colocamos em debate essa situação absurda, na qual as pessoas que reivindicam determinadas pautas acabam sendo reprimidas de uma forma totalmente violenta e antidemocrática”, explica.
Segundo o sociólogo, existe um consenso no atual momento político do país: “só teremos mais conquistas sociais e mais igualdade a partir da luta e das manifestações populares. A democracia das ruas é decisiva neste sentido”. Em contrapartida, “qualquer pessoa que faça uma manifestação, em qualquer lugar, vai se deparar com uma repressão desproporcional”.
Entre os pontos defendidos pelo Manifesto está a proibição do uso de armas (letais ou menos letais) durante os atos populares. Além do livre exercício do trabalho de jornalistas, advogados, primeiros socorros e defensores legais durante as manifestações. “Defendemos o direito de cada cidadão de lutar sem correr o risco de “perder um olho, de sair com uma perna queimada. As pessoas estão sendo alvejadas por estarem lutando democraticamente”, denuncia Tible.
Repressão cotidiana. Além da denúncia da repressão policial contra os manifestantes, como os violentos episódios registrados na capital paulista, na última semana, durante o quinto ato público organizado pelo Movimento Passe Livre (MPL), o Mani-f-esta livre! repudia a cotidiana repressão das instituições policiais contra os cidadãos nas periferias e nos centros urbanos, nas florestas e no campo.
Tible destaca que uma das propostas apresentadas pelo Manifesto é, justamente, a reforma da polícia e a desmilitarização da Polícia Militar. “A violência da PM é cotidiana nas periferias e no campo. O número de mortes dos povos indígenas é altíssimo. A questão é ´como não ficamos chocados com o grau de violência produzida a todo momento?´”.
O documento defende, também, o fim imediato da criminalização dos movimentos sociais, posicionando-se contrário à Lei Antiterrorismo, em tramitação no Congresso Nacional; e contra qualquer uso da lei de organizações criminosas para enquadrar manifestantes.
Lei Antiterrorismo é um grande perigo. Destinado a tipificar o crime de terrorismo no país, o projeto de Lei Antiterrorismo, apresentado ao Congresso pelos ministérios da Justiça e da Fazenda, em junho de 2015. Frente à subjetividade do conceito de “terrorismo”, ele abre brechas na legislação brasileira para a criminalização de organizações e movimentos sociais no país.
Mesmo assim, o projeto foi aprovado na Câmara dos Deputados, com a garantia de que lei não se aplicaria “à conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios, como objetivo de defender direitos, garantias e liberdades”.
No Senado Federal, porém, o artigo que mantinha essa garantia foi retirado do texto original. As penas ficaram mais duras: 16 a 24 anos de reclusão para quem for enquadrado no crime de terrorismo; 24 a 30 anos caso o ato resultar em morte; e reclusão de 10 a 16 anos para quem recrutar, aliciar, organizar ou aparelhar pessoas para atos de terrorismo.
O projeto aguarda nova votação no plenário da Câmara.
“Essa lei é um grande perigo para as lutas a médio e longo prazo. Quem vai às ruas já está desfavorável diante do uso indiscriminado das forças de repressão, isso [Lei Antiterrorismo] pode aguçar mais ainda”, avalia o sociólogo. Citando as manifestações populares no Egito, nos Estados Unidos e na Argentina, Tible destaca que nos últimos anos “houve um levante de uma multidão mundo afora e, ao mesmo tempo, as leis e forças policiais em vários países se aguçaram”.
Longe das polarizações, aponta o sociólogo, o manifesto visa congregar as sensibilidades da esquerda brasileira para essas questões que dizem respeito ao livre direito de manifestação no país. Entre seus 500 signatários, conta Tible, estão “desde anarquistas a representantes de uma esquerda mais moderada”.
“Há também um peso bastante significativo do pessoal da cultura. Cineastas, músicos, pessoal do teatro, tanto que a lista é encabeçada pelo José Celso Martinez Corrêa, do Teatro Oficina”, complementa.
Confiram a íntegra do manifesto e cliquem aqui para a assiná-lo:
Mani-f-esta livre! “Está em grande risco hoje no Brasil um direito elementar e fundante dos direitos humanos, que define a qualidade e vitalidade das nossas democracias: o livre direito à manifestação.
Demonstrações diárias de uma inaceitável repressão: bombas de efeito moral, gás lacrimogêneo, gás de pimenta, balas de borracha e de chumbo assim como cercamentos são convocadas pelas instituições policiais, nas periferias e nos centros, nas florestas e no campo, usadas contra os cidadãos comuns, justamente aquelas e aqueles que estão lutando contra as cercas.
Em 13 de junho de 2013, uma certa editoria paulista (a folha) clamava por “retomar as ruas”, isto é, tirar os manifestantes dela para que o fluxo “normal” dos carros motorizados e individuais retomasse a paisagem urbana. Nesse mesmo dia, a infeliz e brutal repressão à manifestação chamada pelo MPL virou o jogo na opinião pública. Desde então está em plena disputa a ocupação das ruas por manifestantes.
É nas ruas que os direitos são epicamente conquistados, desde o direito ao voto, o de realizar greves ou a abolição da escravidão. E é nas ruas que arrancaremos o combate às desigualdades, a reforma das polícias, o fim do extermínio da juventude negra, do etnocídio dos povos indígenas e do encarceramento em massa – e assim será também com o direito a um transporte público de qualidade, democrático e com o pleno direito às nossas cidades.
Por isso, defendemos:
– o livre exercício do trabalho de jornalistas, advogados, primeiros socorros e defensores legais nas manifestações;
– proibição do uso de armas (letais e menos letais) pelas forças policiais nas manifestações;
– reforma das polícias (com a desmilitarização da PM);
– o rechaço à lei anti-terrorismo, pelo seu caráter anti-democrático, e ao uso da lei de organizações criminosas para enquadrar manifestantes;
– o fim imediato da criminalização das lutas e dos movimentos sociais;
– o debate democrático sobre políticas públicas e a construção de decisões, sobretudo a respeito do transporte público.”
Fonte: Carta Maior