A luta dos povos indígenas é pela manutenção da própria vida e, por isso, precisa ser contínua

Em tragédias como o genocídio do povo Yanomami, há um crime de desatenção, de cumplicidade “involuntária” que nunca prioriza as questões indígenas

A luta pelo direito à vida precisa ocorrer todos os dias e não apenas no Dia Nacional de Luta dos Povos Indígenas (7 de fevereiro). O crime perpetrado contra o povo Yanomami, no norte do Brasil, demonstra que mesmo quando os territórios são demarcados, os direitos mais básicos não estão garantidos para as/os indígenas do Brasil.

É o que explica Celeste Ciccarone, professora do Departamento de Ciências Sociais da Ufes. “As terras indígenas yanomami invadidas por garimpeiros contaram com o apoio e a omissão complacente do Governo Bolsonaro praticando um genocídio. Sinais da implementação desta política genocida já haviam sido dados quando o próprio presidente da República se reunia com garimpeiros e anunciava que não iria demarcar nenhuma terra indígena.”

A professora, que é etnóloga e antropóloga, acrescenta que há omissão de vários setores da sociedade, inclusive de intelectuais e da academia. Ela lembra que a Comissão da Verdade demorou a investigar a violência da ditadura contra a população indígena, citando o caso do Espírito Santo, onde a Aracruz Celulose foi instalada em terras indígenas durante a ditadura militar.

“Há um crime de desatenção, com cumplicidade ‘involuntária’, que nunca prioriza as questões indígenas. A imigração de povos europeus, como as/os italianas/os no Espírito Santo, por exemplo, é celebrada de uma maneira que deixa transparecer que, caso elas/es não viessem, o Estado não teria se ‘desenvolvido’, evidenciando um desprezo pelas culturas já presentes no território, como a indígena. Isso é racismo”, disse.

Crise anunciada

De acordo com Celeste Ciccarone, a crise era anunciada. Além dos Yanomami, estão acontecendo incêndios e matança de indígenas de diversos povos. As questões relacionadas aos povos indígenas, segundo ela, não são uma prioridade para o país e a população brasileira em geral.

“Isso só ocorre com quem trabalha diretamente com as populações indígenas e atua na defesa de seus direitos. Os sinais do genocídio já estavam dados na campanha eleitoral de 2018. Bolsonaro não apenas não demarcou terras, como retirou a proteção, colocou pessoas anti-indígenas na Funai. Nomeou Damares como ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, uma pessoa ligada à ONG que retirava crianças indígenas de suas aldeias para entregar para adoção. O bolsonarismo estatizou o crime. Há jovens Pataxós e Guajajaras sendo mortos e o que fica explícito é que no Brasil a vida de indígenas vale menos ou quase nada na comparação com as das demais pessoas”, frisou.

Educação

E há um problema a ser resolvido na Educação. A professora, que também integra o Programa de Pós-graduação em Geografia da Ufes e é coordenadora da Licenciatura Intercultural Indígena Tupinikim e Guarani da instituição, lamenta que a Educação seja cúmplice a perpetuar uma visão colonial dos povos indígenas e propagar a ideia do indígena distante, que só existe na região amazônica. Ela lembra que a Lei nº 11.645, de 10 março de 2008, tornou obrigatório o estudo da história e cultura indígena e afro-brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, sendo esta obrigatoriedade ainda uma questão aberta  inclusive para cursos superiores que formam professores.

“Os Guarani e Tupinikim, povos que vivem em seu território no Espírito Santo, não são considerados importantes na formação escolar no estado. Eles habitam terras ancestrais demarcadas pela união garantindo seu usufruto permanente. Havia mais indígenas no estado, mas foram obrigados a se espalhar,  expulsos de suas terras em razão de conflitos e ameaças, principalmente durante o período de desenvolvimentismo mais acelerado nas décadas de 60 e 70, quando inclusive o grupo de Guarani e famílias Tupinikim ficaram presos na Fazenda Guarani (Carmesia-MG), Centro de Contenção e Reeducação de índios rebeldes que lutavam por seus direitos às terras”, explicou.

E a professora completa, frisando que “ainda há indígenas urbanos que vivem nas cidades do estado pertencentes a diversos povos e comunidades tradicionais, como pescadores em São Mateus, que se declaram descendentes de indígenas. Houve e ainda ocorre circulação de indígenas cuja mobilidade não obedece às fronteiras estaduais. Precisamos de mais pesquisas que investiguem tudo isso e precisamos de indígenas dentro das universidades à frente das pesquisas. Elas/es estão cansadas/os de serem os ‘informantes’ pesquisadas/os.  Querem o reconhecimento de seu direito à formação superior ainda negada em várias instituições, ocupando os espaços acadêmicos”, concluiu.

Denúncia

O Andes-SN, sindicato nacional do qual a Adufes faz parte como Seção Sindical, defende que o governo de Bolsonaro seja denunciado no Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU por crime de genocídio, considerando que a situação dos Yanomami vem sendo denunciada há tempos e que não pode ser considerada um incidente.

“É preciso mais que comoção nacional. É preciso que o Estado brasileiro utilize suas instituições para investigar as atividades ilegais e predatórias nas terras indígenas, apurar as informações, julgar e punir os responsáveis pelos crimes contra os povos indígenas. Compreendemos que a demarcação das terras indígenas é condição primeira para que a democracia alcance os povos indígenas, mas não é só isso. É preciso reforçar as instituições que atuam nas áreas em conflito, que os marcos declamatórios das terras indígenas em estudo sejam finalizados, e que os povos indígenas ganhem autonomia sobre seus territórios para construírem suas formas de bem-viver”, defendeu o Andes-SN em nota divulgada em janeiro de 2023.

 

 

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