90 anos: Adufes homenageia Maria Clara da Silva, militante histórica pelo direito à moradia no Espírito Santo e no Brasil.

A Adufes homenageia Maria Clara da Silva, militante histórica pelo direito à moradia no Espírito Santo e no Brasil, pelos seus 90 anos de vida, completados nesta quarta-feira, 8 de janeiro de 2025! Para isso, a diretoria do Sindicato solicitou à professora Ana Heckert um texto sobre a história e a importância de Maria Clara. Confira!

 

Maria Clara da Silva: 90 anos de lutas por vidas alegres

Ana Heckert1

Se você tiver com medo, coloca ele na tua frente e vai. Vai com medo mesmo, mas segue em frente, não desiste.” (Maria Clara Silva)

Quantas Marias existem neste planeta? Quantas Marias a cada dia se levantam para criar mundos, inventar horizontes, tecer vidas, inaugurar amanhãs? Quantas Marias vivem cotidianamente as engrenagens perversas do machismo e da pobreza? Quantas Marias reviram o chão que pisam desejando mundos outros onde caibam todas as gentes? Marias que, como Canta Milton Nascimento, “[…] possuem a estranha mania de ter fé na vida”. Marias de sorriso largo e iluminado, que trazem em seu corpo a memória das lutas por vidas plenas, potentes.

Uma dessas Marias nasceu no lugarejo de Aventureiro, região do Mata Dois/Minas Gerais, no dia 08/01/1935 e se chama Maria Clara da Silva. Nasceu na roça, teve uma infância de muita dureza, como a maioria das meninas pobres que vivem nas zonas rurais deste país. Trabalhou desde muito cedo e não pode estudar, não só porque não havia escola próxima à sua moradia, mas também porque se entendia que mulher não tem que estudar para não encher a cabeça de ideias. Infância sem-terra, sem escola, sem teto, mas com muita firmeza. Trabalhou na roça e como lavadeira, suas mãos têm as marcas das tantas roupas que lavou e passou. Nos anos 80 atuou como vereadora do Partido dos Trabalhadores (PT) em Vila Velha/ES (Vereza, 2022). As mãos de Maria Clara da Silva têm as marcas do trabalho, dos sonhos e das lutas por moradia. Maria Clara não é analfabeta, sua escrita não é a formal da escola oficial, mas é a escrita das lutas e das utopias. É nossa mestra das ocupações, das lutas das mulheres, da escuta dos coletivos. Não nos esqueçamos de Paulo Freire (1989) ao nos advertir que a leitura do mundo precede a leitura da palavra.

Maria Clara se casou aos 13 anos e depois foi morar em Aimorés/MG. O marido trabalhava como boia-fria e ela como lavadeira, os filhos começaram a chegar e, com eles, embalava sonhos de uma vida sem tanta dureza. Decidiram pisar em outras terras, nos anos 70 mudaram para Vitória/ES e depois para Vila Velha. Anos após conseguiu comprar um lote em Vila Garrido, onde construíram um barraco de madeira que mais tarde trocou por um lote em Aribiri/Vila Velha, região de mangue. Ali começou outras lutas por acesso à água, luz, aterro do mangue etc. Nessas lutas de ocupação de parte do manguezal de Aribiri, e de outros territórios da Região Metropolitana da Grande Vitória, foi forjado o Movimento de Luta por Moradia (MNLM) nos anos 70/80, no qual permanece militando.

Maria Clara é a expressão das lutas por moradia no ES, entoada pelo seu canto e o brilho de um lindo vestido vermelho: “Nosso direito vem, se não vem nosso direito o Brasil perde também”. Muitas são as ocupações que contaram com suas mãos, suas propostas, seus pés fincados ao chão. Do que se trata? Moradia digna, direito à habitação e à cidade, direito à terra para plantar e morar, direito à escola e saúde para todos. Os pés e as mãos de Maria Clara estão em Aribiri, Nova Rosa da Penha, São Pedro, Dom João, Terra Vermelha, Jabaeté, Santa Clara (em homenagem à Maria Clara), Fazendinha, Casa do Cidadão, IAPI, Santa Cecília, Ocupação Chico Prego, Alice Coutinho (Cariacica), Ocupação Vila Esperança (Vila Velha), e tantas outras que não estão aqui citadas. Maria Clara contagia e espraia seus sonhos nas andanças e nas festas das ocupações, como ela denomina o ato de se apropriar da cidade, da terra.

Ganhou muitos prêmios em sua vida, participou de vários conselhos municipais e estaduais, seu nome está grafado no movimento estudantil (Centro Acadêmico Livre de Psicologia ‘Maria Clara da Silva’) e no movimento docente da Universidade Federal do Espírito Santo. Suas experiências se espalham com os ventos libertários, tecendo ressonâncias e contágios, como o Projeto de Extensão e Pesquisa Esteticidades2. Uma artesã de amanhãs, de sonhos vindouros, que partilha café com broa, sorrisos doces, e firmeza de princípios que são partilhados nos conselhos com os quais presenteia seus ouvintes. Sua firmeza chama atenção para os intoleráveis que não podemos mais suportar, interroga os limites de uma cidadania consentida que ainda vigora entre nós.

Maria Clara segue inquieta fiando outros possíveis, desejando arranjos mais solidários e generosos. Permanece convidando a todos nós para inaugurarmos direitos sociais e políticos que acolham a vida que varia. Maria Clara segue batendo palmas com seu vestido vermelho e acreditando que a festa acontece quando o povo se ‘ajunta’, apostando na afirmação de vidas humanas e não humanas. Agradecemos ao universo pelo presente que nos deu, ou seja, a existência de Maria Clara, mulher desdobrável que inaugura linhagens, que alimenta com alegria a estranha mania de ter fé na vida. Gratidão por tua vida, gratidão por todo aprendizado e pelas festas que você ainda vai inaugurar.


Referências

Cláudio Vereza. Maria Clara: de repente nossa vista clareou. Caderno em Homenagem à Maria Clara da Silva. Entrevista concedida em 1983 à Cláudio Vereza. 2022.

Milton Nascimento e Fernando Brant. Maria, Maria. Clube da Esquina 2. 1978.

Paulo Freire. A importância do Ato de Ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Autores Associados. Cortez, 1989.


1 Profa aposentada do Departamento de Psicologia da UFES e filiada à Adufes.

2 Projeto de Extensão e Pesquisa do Departamento de Psicologia da UFES, que vem registrando a história do movimento de moradia no Espírito Santo e de suas lideranças, como Maria Clara da Silva. Foi elaborada uma plataforma que aborda essas histórias. Ver https://moradasplataforma.com/

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