Texto da sessão “Fala, docente!”
A efetivação do direito à educação infantil no Brasil encontra muitos percalços. É histórica a luta pela ampliação do atendimento educacional às crianças pequenas (de 0 a 5 anos e 11 meses de idade) e pela promoção de qualidade adequada às especificidades do público infantil, relacionada à constante defesa da efetiva integração ao sistema de ensino e de financiamento para essa etapa da educação básica. A educação infantil ainda reivindica, e é urgente, também seu reconhecimento político e pedagógico. A garantia do direito à educação infantil requer superar a ausência de prioridade dada a essa etapa da escolarização, considerada ainda menos importante.
Com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB – Lei nº 9.394/1996), a educação infantil passou a integrar o sistema de ensino como primeira etapa da educação básica e, quanto à formação de professores, tem-se, com a LDB, exigência de formação mínima para atuar nessa etapa educacional. Esse aspecto merece destaque não só porque relacionado diretamente à qualidade do ensino ofertado às crianças na educação infantil, mas porque a valorização dos professores, que é também bandeira histórica de luta, vincula-se ao direito à formação docente, o que na educação infantil é ainda mais desconsiderado.
A menor importância dada à educação escolar das crianças pequenas encontra guarida em afirmações que julgam que apenas estar na companhia das crianças atendendo suas necessidades básicas de saúde, bem-estar e segurança são atributos suficientes que credenciam à docência na educação infantil, ou mesmo que o processo continuado de cuidado de crianças pequenas ao longo do tempo constitui todo o necessário para a educação escolar desse público. Se por um lado sabemos que a recente história da educação infantil guarda contradições nessa direção, e que ainda está em debate sua identidade, que se expressa nas várias concepções acerca da essencial relação entre cuidado e educação, por outro, no âmbito acadêmico pelo menos, esperamos que seja indubitável que o exercício do magistério – seja na educação básica, seja na educação superior – requeira formação específica; formação que seja adequada e continuada. A negativa dessa assertiva, especialmente para a educação infantil, justifica e faz avançar as reiteradas investidas na desvalorização dos professores ao mesmo tempo em que nega às crianças o direito inalienável à educação.
Entendemos que a apropriação da ciência pedagógica é condição para a formação de professores da educação infantil, pois nos permite tomar o processo educativo na configuração de seu duplo objeto: a identificação dos elementos culturais essenciais que precisam ser assimilados para alcance das máximas possibilidades formativas e, ao mesmo tempo, as formas mais adequadas para atingir esse fim (SAVIANI, 2019). Também o domínio da ciência psicológica, que em articulação à pedagogia e às ciências relacionadas as demais áreas do conhecimento, nos permite adensar a compreensão acerca das vinculações entre forma (maneira de ensinar), conteúdo (elementos culturais essenciais) e destinatário (aquele a quem ensina) (MARTINS, 2013).
A negação da qualificação profissional para atuação na educação infantil especialmente, coaduna-se à lógica neoliberal, perversa, destruidora, utilitária. Sob os termos das competências socioemocionais, reivindica para essa etapa um profissional afetuoso, carismático, acolhedor, divertido, sem que o domínio pelos professores dos necessários conhecimentos científicos que devem subsidiar o ensino também nessa etapa da escolarização seja considerado. Sob essa lógica, os conhecimentos pedagógicos, psicológicos, filosóficos, por exemplo, são tomados como dispensáveis aos professores da educação infantil.
É compreensível que no senso comum haja equívocos acerca da formação docente, mas no meio acadêmico, onde atuam professores, ainda que a especificidade da educação infantil não seja tão familiar a muitos por não tê-la como objeto de estudo, é esperado que haja a defesa intransigente da formação docente, que é também a defesa de formação de qualidade aos alunos, sejam eles da educação infantil ou da educação superior.
A história da educação infantil – marcada por importantes lutas e conquistas – evidencia contradições acerca da influência das pedagogias hegemônicas e da necessidade de afirmação da identidade dessa etapa, por isso consideramos importante colocar em evidência esse tema. Qualquer anúncio, ainda que sutil e breve, sugerindo que professores da educação infantil se formam apenas e tão somente no exercício cotidiano, nas interações com as crianças ao longo do tempo, contribui para justificar a manutenção da precariedade da formação de professores para atuar nessa etapa e revela um compromisso político divergente às necessidades dos professores e das crianças, especialmente das crianças da classe trabalhadora.
Há tendências pedagógicas que advogam a centralidade infantil em contraposição à ideia de escolarização, referindo-se a práticas escolares como não adequadas para as crianças pequenas e tais tendências encontram terreno fértil nas competências socioemocionais que se traduzem na educação infantil obnubiladas por afeto e cuidado. Tais tendências têm ganhado a cena da formação de professores. Desqualificam a docência na educação infantil, comprometem a qualidade da prática pedagógica, favorecem que não avance uma perspectiva crítica a respeito do que é o ensino na educação infantil e sua importância para a formação humana em suas máximas possibilidades – o que tem implicações para o desenvolvimento da autonomia dos professores e das crianças.
É urgente a afirmação da formação dos professores da educação infantil, o que é também afirmar a importância da educação infantil para a humanização de todas as crianças, mas, de modo especial, dos filhos da classe trabalhadora, pois, em uma sociedade de classes as oportunidades não são as mesmas para todos e são sobre os mais desfavorecidos que incidem as piores condições.
MARTINS, Lígia Márcia. O desenvolvimento do psiquismo e a educação escolar:
contribuições à luz da psicologia histórico-cultural e da pedagogia histórico-crítica. Campinas: Autores Associados, 2013.
SAVIANI, Dermeval. Pedagogia Histórico-Crítica, quadragésimo ano: novas aproximações. Campinas-SP: Autores Associados, 2019.
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