Qual “esvaziamento da universidade”?

Se você é contra o esvaziamento da universidade, você é a favor da greve!

Estamos em greve.  Em todo o país, servidores públicos federais do setor da educação aderem diariamente ao movimento paredista, que põe na mesa, além das pautas corporativas (salário, carreira, condições de trabalho), a recomposição do orçamento das universidades e institutos federais, a ampliação das políticas de assistência estudantil e a revogação de medidas ou de projetos que têm implicações lesivas para o direito à educação e  serviços públicos de qualidade, como, por exemplo o Novo Ensino Médio e a Proposta de Emenda Constitucional 32 (Reforma Administrativa), entre outras medidas que o movimento grevista denuncia.

Espero abrir aqui franco diálogo com você, que se deteve na leitura deste texto. Com os sentidos do movimento grevista em disputa neste momento, é determinante para seu destino a busca de interlocução com toda a comunidade e também com o público externo. Focalizo, especificamente, a preocupação relativa ao esvaziamento da universidade, mencionado com frequência em assembleias, reuniões, aulas e nas redes sociais dos sindicatos.

A posição que defendo aqui pode ser formulada nos seguintes termos: o movimento grevista luta justamente contra o esvaziamento da universidade. Resta saber a qual esvaziamento está-se referindo quando se apresenta contrariedade à greve.

Fui buscar os relatórios de gestão de nossas pró-reitorias de graduação (Prograd) e de planejamento (Proplan), devidamente publicados no sítio da universidade e elenco alguns fatos. Obviamente, não se trata de uma análise profunda dos dados, mas de apontamentos a respeito dos parâmetros mínimos que deveriam suscitar questionamentos que não podemos nos furtar a fazer.

  1. O ingresso de estudantes de graduação na UFES tem diminuído. Tomem-se os anos de 2022, quando as matrículas ativas contavam 17.089, que diminuíram para 15.573 em 2023, segundo a Prograd. Isso é esvaziamento da universidade!
  2. Cerca de 50% dos cursos de graduação da Ufes têm sobra de vagas há muitos anos. Há cursos nos quais sobram 70% das vagas. Essa taxa de ocupação insuficiente das vagas vem aumentando e a pauta da greve inclui reivindicações fundamentais que incidirão sobre essa realidade (por exemplo, a ampliação de políticas de assistêcia estudantil reivindicada pelo movimento paredista possibilitaria aumento dos índices de permanência e de conclusão dos cursos, o que hoje é inviabilizado pela pauperização de nosso povo). Sobra de vagas é esvaziamento da universidade!
  3. A taxa de desligamentos (“jubilamento”) também reclama atenção. Em 2022, havia 5.537 processos de desligamento em curso, dos quais 1.146 se efetivaram. Em 2023, os processos de desligamento quase dobraram, chegando a 9.721 casos, com 2.321 desligamentos realizados. Um número altíssimo, que precisa ser interpretado em face do desemprego e da deterioração das condições de vida que impulsionam nosso público estudantil para atividades imediatas de satisfação das necessidades básicas e, portanto, prioritárias para a sobrevivência, se comparadas ao estudo e à pesquisa. A criação de condições para contornar esses desligamentos aponta para a estrutura da universidade; restaurante universitário funcionando três vezes ao dia, sem restrição de acesso; fomento à produção e trânsito científicos, com subsídio para livros, congressos e outras atividades hoje financiadas pelos estudantes que conseguem pagar do próprio bolso, ou seja, a minoria; bolsas com valores que sejam suficientes para atuação exclusiva na pesquisa;  ampliação da política de permanência. O alto índice de desligamentos é esvaziamento da universidade!
  4. O corpo docente é cada vez menor para a quantidade de aulas, cursos e outras demandas de trabalho. E, embora esse corpo docente seja composto por cerca de 52% de mulheres, os espaços de decisão seguem ocupados por uma maioria de homens brancos, o que sinaliza, entre tantas coisas, que as mulheres continuam pagando a conta do arrocho salarial e da sobrecarga de trabalho, enfrentando limitações desproporcionais em relação ao tempo para atuar acadêmica e politicamente e, assim, “produzindo” menos. Isso é esvaziamento da universidade!
  5. Servidores técnico-administrativos (TAEs) abandonam a universidade porque encontram postos de trabalho mais atraentes fora da instituição. Isso é esvaziamento da universidade!
  6. Há crescente evasão em muitos cursos. Isso é esvaziamento da universidade!
  7. A quantidade de “professores envolvidos em pesquisa” despencou segundo a Pró-Reitoria de Planejamento (Proplan). Havia  355 projetos de pesquisa sob orientação de docentes em 2020. Em 2021, esse número despencou para   6.874 , seguido por  6.948 em 2022, que caíram para  2.025 no ano de  2023. Isso é esvaziamento da universidade!
  8. A vida presencial, de carne e osso, que possibilita o encontro com a diversidade, o genuíno debate e dá sentido à aprendizagem, trocas, trânsito acadêmico tem perdido cada vez mais espaço para formas virtuais de interação. Isso é esvaziamento da universidade!
  9. Os dados não compõem um vácuo histórico, mas decorrem, em sua maioria de processos de desmonte dos serviços públicos, política de austeridade fiscal (vide o Teto de Gastos que congelou por 20 anos investimentos em educação e saúde, re-editado na forma do Arcabouço Fiscal de Lula/Haddad) que impede a classe trabalhadora de chegar à universidade; processos de “otimização” da força de trabalho, que resultam na não ampliação do contingente de servidores (docentes e técnicos), gerando extensão da jornada de trabalho, intensificação do trabalho e adoecimento; Não haveria de ser outro o cenário, uma vez que, desde 2015 o orçamento da UFES encolheu à metade dos recursos. Isso é esvaziamento da universidade!

Não é de hoje que cortes sucessivos feitos pelos governos federais nos estrangulam, acarretando as diferentes formas de esvaziamento que ora apontamos. Faltam bolsas para pesquisa, extensão, monitoria obrigando estudantes a trabalhar em outros setores e abrir mão do trabalho científico. A sobrecarga de trabalho docente nos afasta da pesquisa e embota nossa capacidade crítica, criativa, nossa condição para a formulação teórica e a produção científica.

As investidas institucionais voltadas, entre outras coisas, a evitar o esvaziamento decerto demarcam uma preocupação, sem, contudo, necessariamente surtirem o efeito desejado. A despeito de iniciativas como o Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (Pibid), o Programa de Educação Tutorial (PET), o Programa Institucional de Apoio Acadêmico (PIAA), Permanecer e Concluir, projetos de ensino e de residência pedagógica, as taxas de desligamento e  evasão se mantêm ou aumentam. Basta ler os relatório de gestão. Mas nem para isso temos tempo, estamos exaustos e adoecidos. Esse é o plano – promover o esvaziamento da crítica, o esvaziamento político, de modo que nos enganemos com o ir e vir de pessoas dentro da universidade, como se essa movimentação significasse que temos de fato uma universidade socialmente referenciada porque “movimentada”. É hora de parar tudo. Até quando a qualidade do ensino, pesquisa e extensão que oferecemos ficará nas costas de professores  que vivenciam a sobrecarga, endividamento, adoecimento e perda do sentido da docência na universidade? Não há o que comemorar quando lemos notícias sobre posições em rankings e notas altas de programas de pós-graduação, se o ônus está sendo absorvido por professores que não têm fim de semana, feriado e aproveitam as “férias” para escrever artigos – não raro gabando-se disso, tamanho o alheamento a que são submetidos.

Esse mesmo esvaziamento turva nossa visão para que não nos pronunciemos enquanto o orçamento público está em franca disputa por agentes desprovidos de qualquer compromisso com o serviço público, como, por exemplo a Fundação Lemann. Enquanto os recursos do país são drenados para o empresariado e o sistema financeiro por meio do sistema da dívida pública. A universidade está cada vez mais vazia mesmo. Vazia da crítica, vazia do humano. Todos esses esvaziamentos têm sido terreno fértil para que uma ocupação de outra natureza ocorra e visceje: mais empresariamento e uma lógica privatista no trato da coisa pública, mais virtualidade, mais individualismo, mais competição, mais racismo, mais controle externo, mais sujeição a índices de impacto, mais encastelamento, mais internacionalização rendida na divisão internacional do trabalho, mais elitismo.

Eu não gostaria de entrar em greve. O calendário acadêmico é decerto muito caro a nós. Da mesma forma, nosso planejamento pessoal de férias sempre tão esperadas e merecidas. O alvoroço que vivenciamos com uma greve é o que menos desejamos diante de tantas tarefas que temos para cumprir. Mas esgotamos todas as possibilidades. Tentamos diversas rodadas de negociação com o governo e fomos enrolados, desrespeitados, humilhados. Fomos inclusive ameaçados de sequestro de nosso direito à greve, o que significou uma espécie de incitação a milhares de servidores públicos federais nos último dias.

É sobretudo por sua pauta ampla, que transcende as legítimas reivindicações corporativas (salário, carreira e condições de trabalho) e exige também a recomposição do orçamento da universidade e a revogação de medidas lesivas ao direito à educação, que a greve se tornou hoje um imperativo ético-político.

Foto: professor Paulo Roberto Sodré.

Links para os Relatórios citados:

Relatório de Gestão 2023 da Pró-Reitoria de Planejamento (Proplan)

https://prograd.ufes.br/sites/prograd.ufes.br/files/field/anexo/relatorio_de_gestao_-_exercicio_2022_0.pdf

https://prograd.ufes.br/sites/prograd.ufes.br/files/field/anexo/relatorio_de_gestao_-_exercicio_2023_compressed.pdf

 

 

 

 

 

*Junia Zaidan – É professora do Departamento de Línguas e Letras/CCHN da UFES. Foi presidente da Adufes na gestão Autonomia e AfirmAção (2021-2023) e Secretária Geral da Adufes na gestão Propositiva e Plural (2019-2021). É membro do Grupo de Trabalho Política de Formação Sindical (GTPFS) e do Grupo de Trabalho de Comunicação e Arte (GTCA). Escritora, tradutora e linguista, coordena o Observatório de Tradução (Proex/UFES).

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