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A Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) concedeu nesta terça-feira, 15 de abril, o título de Doutora Honoris Causa à escritora, linguista e referência da literatura brasileira contemporânea Maria da Conceição Evaristo de Brito, 78 anos. A proposta da homenagem foi encampada por diversas entidades, entre elas a Associação dos Docentes da Ufes (Adufes), que esteve envolvida desde o surgimento da ideia até a realização do evento.
A cerimônia foi realizada no Teatro Universitário, à noite, e contou com a presença de autoridades acadêmicas, estudantes, representantes de movimentos sociais e admiradores da obra da autora. Durante todo o dia, Conceição participou de diversas atividades e também concedeu uma coletiva de imprensa. Na ocasião, abordou temas como escrevivência, literatura, ditadura militar, os desafios históricos enfrentados pela população negra no Brasil e sua trajetória pessoal.
Ao ser perguntada sobre como se sentia com a homenagem, a escritora contou que o momento a fez lembrar de uma experiência vivida na juventude. Aos 20 anos, ela foi levada por uma família de Belo Horizonte para trabalhar como arrumadeira em Marataízes, no litoral sul do Espírito Santo. Na casa, ela e outra funcionária, que atuava como cozinheira, não podiam utilizar o banheiro da residência e eram obrigadas a recorrer à praia, entre plantas com espinhos, quando já não aguentavam mais segurar.
Para Evaristo, retornar ao estado em uma condição tão distinta foi profundamente simbólico. Ela destacou que o reconhecimento não era apenas pessoal, mas fruto da luta coletiva do povo negro, especialmente das mulheres negras, e dos movimentos sociais que vêm construindo espaços de resistência e transformação dentro e fora das universidades. Para ela, o amadurecimento da sociedade brasileira tem permitido reflexões mais profundas sobre a constituição social do país, ressaltando que ainda é preciso avançar e reconhecer muitas outras pessoas negras e indígenas.
Escrevivência como resistência
Durante a coletiva, Evaristo explicou o conceito de “escrevivência”, termo que criou para se referir à escrita que parte da experiência de grupos marginalizados e que desafia a noção de neutralidade na pesquisa acadêmica. Segundo a autora, toda escolha de objeto de estudo já é atravessada pela vivência e história de quem pesquisa. Ela afirmou que a escrevivência não se confunde com os conceitos de “escrita de si” ou “autoficção”, pois carrega uma base histórica e ancestral distinta.
Para ilustrar, mencionou as mães pretas que, no período escravagista, eram responsáveis por contar histórias às crianças brancas das casas grandes. Essas mulheres, segundo Evaristo, tinham até mesmo sua fala dominada pelo sistema escravocrata e patriarcal. A escrevivência, segundo ela, busca ao mesmo tempo apagar e reconhecer essa imagem como base da escrita de resistência que se desenvolve hoje.
Literatura como agente de transformação
A escritora também falou sobre o papel transformador da literatura. Para ela, os textos literários têm poder de convocação e comoção, criando vínculos de cumplicidade com o leitor, mesmo quando este não compartilha da mesma vivência retratada. Quando uma obra desperta consciência política, ela pode atuar como agente de transformação, ainda que não tenha essa obrigação. A literatura, destacou, pode salvar pessoas, mesmo quando essa não é sua intenção.
Evaristo ressaltou a importância de se apropriar do espaço acadêmico, mas valorizando a língua portuguesa não apenas pela gramática e suas normas, mas também pelas formas populares do seu uso. Para ela, essa abordagem abre novos caminhos para a produção de conhecimento em diferentes áreas da ciência.
Novo romance a caminho
Tem livro novo sendo escrito. Durante a entrevista, Conceição Evaristo revelou que está trabalhando em um novo romance: Flores de Mulungu. A obra gira em torno de uma matriarca que fará aniversário e recusa a festa proposta pela comunidade. Seu único pedido é receber flores de mulungu. A escritora explicou que o livro abordará a ideia da diáspora e o desejo da personagem de reunir os filhos espalhados pelo mundo. Questionada sobre a data de lançamento, Evaristo respondeu com bom humor, dizendo que a editora vive fazendo a mesma pergunta, arrancando risos das/dos presentes.
Ditadura
A homenagem à escritora ocorreu poucos dias após a Ufes revogar os títulos de Doutor Honoris Causa concedidos anteriormente aos ex-presidentes Emílio Garrastazu Médici e Humberto de Alencar Castelo Branco, além do ex-ministro da Educação Rubem Carlos Ludwig, todos vinculados à ditadura militar-empresarial que oprimiu o Brasil por mais de duas décadas.
Para Conceição Evaristo, a coincidência tem muito simbolismo. Ela observou que ter seu trabalho reconhecido nesse contexto, enquanto nomes que sempre estiveram no poder são revistos pela história, é uma demonstração de que transformações são possíveis. Destacou que conheceu a opressão promovida pela ditadura quando atuava nos movimento de base da Igreja Católica e que a literatura tem o poder de transformar a realidade.
Para ela, o atual momento também é resultado de políticas de ações afirmativas, como o sistema de cotas, e defendeu que é preciso repensar, na prática, como promover mudanças estruturais nas instituições. Segundo ela, muito se utiliza o racismo estrutural como desculpa para a imobilidade, esquecendo-se que estruturas não são espontâneas, mas sustentadas por pessoas com poder que podem optar por caminhos que as mantenham ou que as modifiquem.
Homenagem
A homenagem recebida por Conceição Evaristo nesta terça-feira, 15, foi aprovada por unanimidade pelo Conselho Universitário da Ufes em setembro de 2024. O título de Doutora Honoris Causa celebra a relevante contribuição de Conceição Evaristo para a cultura, a educação e as lutas sociais no Brasil, e em especial para a valorização da população negra e da produção intelectual das mulheres negras.
Conceição Evaristo é a primeira mulher negra a receber essa honraria na história da instituição. A proposta da homenagem foi impulsionada por diversas entidades, entre elas a Associação dos Docentes da Ufes (Adufes), que esteve envolvida desde o surgimento da ideia até a realização do evento.
A professora aposentada Rita Lima, da base da Adufes e integrante da comissão organizadora, destacou que “até hoje, apenas duas mulheres haviam recebido essa honraria na Ufes, e nenhuma delas era negra. Essa homenagem marca um passo fundamental no compromisso da universidade com a justiça histórica e a valorização de trajetórias que representam resistência e transformação social”.
A diretora da Adufes Ana Cláudia Borges entregou flores à homenageada, em nome do Sindicato, durante a cerimônia. Além disso, mais cedo, durante recepção oferecida pela Universidade à escritora, Ana Cláudia e a presidenta da Adufes, Ana Carolina Galvão, estiveram com Conceição Evaristo e a presentearam com publicações do Sindicato.
A presença da autora foi celebrada com entusiasmo pelo público, que acompanhou discursos, leituras e homenagens em uma noite marcada pela emoção e pela afirmação da diversidade, em especial a presença de pessoas negras em posições de poder, no espaço acadêmico.
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