O adolescente de 16 anos, que exibe a nota de culpa, foi mais uma vítima do ”arrastão” que a polícia fez no dia 19 de julho, no Centro de Vitória, durante manifestação
Há um mês, mais precisamente no dia 19 de julho, o engraxate, que vamos “batizar” de Renato, abreviou o dia de labuta naquela sexta-feira, como muitas outras pessoas que trabalham no Centro de Vitória. Afinal, os enfrentamentos entre políciais e manifestantes despertavam mais curiosidade do que medo.
Com o jovem de 16 anos não foi diferente. Ele pôs sua caixa de engraxate no ombro e rumou para a Praça Oito, onde se podia ter uma visão privilegiada do confronto. De uma hora pra outra, Renato e outros transeuntes passaram da condição de expectadores para manifestantes. “De repente, um bando de gente veio correndo na minha direção e a polícia atrás, disparando balas de borracha e lançado bombas. Pensei, não vou correr para mostrar pra polícia que não estava no meio da confusão. Afinal, manifestante corre, não fica parado”.
O engraxate instintivamente ainda usou o recurso de levantar as mãos, em sinal de trégua. Não adiantou. Quando se deu conta estava algemado pelos pés e mãos engalfinhado com outras pessoas (manifestantes ou não) no “cofre” da viatura policial.
Sem ter oportunidade de explicar que não tinha nada a ver com o ato que começara na manhã do dia 19 com ataques ao Palácio Anchieta e se estendia tarde adentro, Renato foi encaminhado para o Departamento de Polícia Judiciária de Vitória.
“Lá no DPJ eu fiquei da tarde de sexta [19] até o sábado [20] algemado ora dentro, ora fora da cela, sem contato com a família e sem alimentação”, contou.
Renato, que é de Mantena, Minas Gerais, está morando no Estado há um ano. Ele conta que já morou na rua, mas que hoje divide um quarto e cozinha com a companheira de 17 anos. “Nem pude falar com minha esposa ou minha sogra para dizer o que estava acontecendo. Elas estavam preocupadas, me procurando”.
As violações no DPJ não se restringiram à falta de comunicação com a família. “Apesar de ser apresentado na delegacia como manifestante, o tratamento que recebi foi de bandido. Nunca pensei que passaria um dia por isso. Morei na rua, passei necessidade, mas nunca me envolvi com o crime. Tanto que não tenho passagem pela polícia. Nunca havia entrado numa unidade de adolescentes”.
Antes de deixar o DPJ de Vitória, o adolescente foi obrigado a assinar uma Nota de Culpa das mãos do delegado Danilo Bahiense, convocado para comandar a “baciada de flagrantes” forçados. Na nota, o adolescente aparece com 18 anos e é acusado de depredação de patrimônio público e privado, formação de quadrilha, entre outros artigos que não foram explicados a ele. Além da data errada, outros dados também estavam incorretos, como filiação e local de nascimento. Mas isso era o que menos importava para a autoridade policial. O importante era fazer as prisões.
“Na nota, o ano do meu nascimento aparece 1994, mas eu nasci em 1997”. Além da nota de culpa, o mandado de intimação e o alvará de liberação também contêm erros. Cada documento traz informações distintas sobre a qualificação do adolescente, dando a impressão de que a documentação foi feita às pressas, sem rigor algum. Detalhe, o adolescente portava documento no momento da apreensão.
Se as primeiras 24 horas que passou no DPJ de Vitória foram traumatizantes, o pior ainda estaria por vir. “No Iases [na verdade na Unidade de Atendimento Inicial (Unai), em Maruípe, Vitória] fui jogado numa cela que só cabia oito, mas tinha quase 30 menores. Cheguei, e fui logo avisando que respeitaria todo mundo, mas que exigiria ser tratado com respeito. Ninguém mexeu comigo. Já outros dois meninos que foram presos na manifestação, vamos dizer assim, sem preconceito, mas com cara de playboy, como dizem, passaram um sufoco. Ali na cela havia um monte de gente misturada, bandido com pessoas que não tinha nada a ver com o crime, como no meu caso e acho que no dos outros dois rapazes. Eles só não foram zoados porque foram humildes. Tiveram sorte”.
Renato só seria solto na segunda-feira (22). Nesse período em que ficou na Unai, o adolescente não pode se comunicar com a família e acabou ficando esquecido. Ele conta que outros dois jovens apreendidos com ele foram soltos ainda no sábado (20). “Acho que a família tinha dinheiro para pagar advogados”, suspeita.
O engraxate não teve a mesma sorte, e ficou quatro dias preso. “O que aconteceu foi uma coisa horrível que eu não quero passar nunca mais. É uma pressão psicológica que não sei te descrever. Quando os outros dois foram soltos na madrugada do dia 20 eu fiquei ainda mais assustado. Nesses dias que fiquei preso vi muita coisa acontecendo ali. Agente espancando menor, brigas e menor indo para o hospital”, desabafou.
O adolescente só seria solto na segunda-feira (22), após um agente socioeducativo questionar se ele já tinha passagem pela Unai. “Ele começou a conversar comigo e quando falei que nunca tinha estado lá ele me deu mais atenção. Acabei contando toda a minha história de como fui parar lá e eu acho que ele viu que não era para eu estar ali. Foi ai que me encaminhou para uma assistente social e então fui solto”.
Dias depois de reconquistar a liberdade, Renato viveria um novo drama. O Núcleo de Repressão às Organizações Criminosas (Nuroc) intimava o adolescente a comparecer ao órgão no dia 26 de agosto. “Muitos dos meus clientes são advogados que transitam pelo fórum. Mostrei o papel [a intimação] a um deles e pedi orientação. Ele explicou que o caso não era da área dele, mas que iria conversar com outro colega para me ajudar”.
O advogado André Moreira, que tem acompanhado outros casos de manifestantes presos no protesto do dia 19, passou a orientar o adolescente. De acordo com Moreira, a prisão, em tese, se mostra arbitrária, visto que o jovem foi preso sem motivação.
Além disso, ressaltou Moreira, em um caso de apreensão de adolescente é preciso entrar em contato com a família ou, se for o caso, com um defensor público que garanta a proteção integral do jovem, o que não ocorreu.
“A proteção integral do jovem foi completamente ignorada pela polícia. Jogaram o rapaz numa Unai superlotada. Ele não teve acesso a um defensor para acompanhar a nota de culpa nem a qualquer assistência a que tem direito”, frisou.
Segundo advogado, no caso de apreensão de adolescente, a privação de liberdade deve ser sempre a última alternativa. “Neste caso, o delegado deveria ter feito um termo de entrega sob responsabilidade, ou seja, a recolocação dele na família”, explicou.
O caso de Renato será levado ao grupo de advogados que acompanha outros processos de prisão e intimação de pessoas envolvidas ou não em manifestações.
“O objetivo agora é impedir que o jovem tenha obrigação de comparecer ao Nuroc (ainda nessa terça (19), a Secretaria de Segurança transferiu o inquérito do Nuroc para a Patrimonial, que dará sequencia às investigações), visto que seu processo continua correndo apesar da liberdade. Queremos que a ficha dele fique limpa. Afinal, este jovem morou na rua e mesmo assim conseguiu se manter longe de problemas, o que hoje é raro”, destacou Moreira.
O adolescente informou que irá cobrar as humilhações que passou durante os quatro dias de detenção do Estado. “Quem tem que provar que eu estava envolvido são eles. Eu sei que não estava. Mas, além disso, quero uma retratação do Estado, uma indenização, porque agora eu tenho uma passagem injusta pela a polícia que sujou minha ficha”, finalizou
Fonte e Foto : Século Diário