Conversa infinita nasceu do diálogo entre André Queiroz e Gaspar Paz. São trocas e experimentações com a escrita que se intensificaram durante esse período de pandemia Covid 19. A ideia foi um jogo repentino (lembrando o “repente”) de impressões sobre o momento atual.
Há os que buscam “tempos perdidos” como Proust (o mais estrangeiro entre os estrangeiros)
E há os que esperam tempos remotos
em moto-contínuo, remoto-controle (com o corpo e a pele dos cordeiros-autômatos)
Nesses últimos,
o disfarce tecnológico irrefletido
Revela a convulsão do instante-emergencial
Instante cruel,
como nos lembra a elegia drummondiana,
Instante que põe a nu as aporias de um tempo que se anuncia e se fecha.
(Gaspar Paz)
Há os que se perdem entre as areias/arengas do tempo. E vá saber se os caminhos os arremetem às vagas de outrora.
Há os que emperram máquinas moldes tornos
talvez que num arranjo de hora às tamancas.
Mas como não lembrar daqueles outros
Que se encarregam das listas o apito salmônico
da delação
Hora aciaga
trespassada de cancro
Suspiro agônico
da tísica,
Hora anversa na que os chacais sopram versos
que enebriam e convocam
náufragos catapultados
(André Queiroz)
E é ainda tempo de silêncio
Tempo que nos leva a outros tempos-reminiscências
Tempos do silêncio assassino da exclusão,
Do silêncio estupefato
após os disparos que assassinaram Marielle Franco, Anderson Gomes
O silêncio assombrado diante
da violência crua e cruel (um carro alvejado por 80 tiros no Rio de Janeiro)
O silêncio perplexo com o silenciamento
da voz
do corpo
da vida nua
O silêncio baratinado com os preconceitos e com a morte dos direitos humanos
Mas também quiçá um silêncio-fôlego
antes da ação
de onde brotam as diversas vozes
que não se calarão
(Gaspar Paz)
’Já os vejo já os ouço
a essa malta essa turba esse berrante que grita
resfolega o coro da primavera’
Alguém foi quem o disse
E desse anúncio novidade
foi um tal de ‘pernas pra que te quero’
que o mercado de gentes se
fez rebento.
Um homem que passava
destilou a descrença
– e quede que ao niilista
se lhe arranjou casa comida pasárgada
Era tarde aquele ensejo ao nada-fazer
Ouviu-se o sopro dos longes
fincado à nova terra
como se já nada restasse
senão o júbilo
àquela hora definitiva.
(André Queiroz)
Me pergunto se um dia serei capaz deste descanso-descaso, se serei capaz deste alheamento, dessa indiferença. Se serei capaz deste salto escafândrico vertiginoso, deste sono sem heresias ou negociatas. Se serei/se seremos nobilíssimos ao ponto das armas baixas, das palavras contidas no céu de estrelas das bocas cerzidas, se serei se seremos sóbrios sem afronta vaidade acúmulo de quinquilharias. Se serei se seremos expressão nua (como esta) de descaso aos fogos do artifício perfumado, tapete vermelho, ordem do dia, boleto de sanha e de miséria. Se serei se seremos envoltos de cumplicidade com a vida a ponto de solamente vivê-la como quem prepara a esteira ao sono dos justos…
(André Queiroz)
O sono do gato
Essas perguntas não têm respostas dadas, poeta-malabarista de imagens e sons
Mas fazes bem em recolocá-las
A hora anódina não vem
antes do timbre áspero-afetuoso,
do gesto rápido e preciso,
do salto incauto que transita pelos desejos e necessidades da vida
No alongar do corpo-cético, de olhar penetrante e escuta supersônica — a uma só vez atento e distraído,
muitas coisas estão ditas
Eu também me pergunto se um dia serei capaz de tamanhas estripulices, de tamanha habilidade
Pergunto se saberei/ se saberemos lidar com essa espera do tempo
que se esvai, que escorrega para os lugares mais insólitos
Sonho sempre com a aura dos gatos (tranquilos-impacientes) e também com o olhar circundante das corujas
Mas, de fato, não sei se estarei/ se estaremos a altura desses gestos
Nessa hesitação das horas e dos imobilismos dos sem lugares
Sigo mentindo espaços e tempos, metaforizando os sentimentos
É nesse tilintar que encontro os laivos do prazer
Nos acordes da canção,
Na cena-instante-fílmica-inacabada
No repouso alcoólico depois do amor
Nas quilombagens e batucagens que há muito, há muito, mas há muito tempo pulsam no meu corpo
(Gaspar Paz)
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