A última semana de maio de 2020 foi infernal, tanto no que diz respeito ao volume de trabalho, quando ao calor das discussões que a animaram. Os processos a que nós, professores da UFES, fomos submetidos, foi – apesar de muito estressante e de representar a derrota de uma posição que pessoalmente defendia – bastante importante para pensar o tempo em que vivemos. Há muito nesse período para se aprender acerca de questões atuais para a classe, como democracia em momento de recrudescimento de um regime autoritário e Educação a Distância. Acredito que nos debruçar sobre um tema muito caro a mim – professor de radiojornalismo e de som para audiovisual e pesquisador de sonoridades urbanas – é fundamental ao momento: a escuta.
Minha semana – e acredito que a dos demais colegas – foi recheada de reuniões em que se discutia um mesmo tema que para alguns de nós era novo e não estava muito claro: a suspensão do calendário acadêmico desse ano marcado pela pandemia de Sars-covid 19. A pauta desceu desembestada ladeira abaixo como um trator sem freio e nos atropelou a todos, a partir de um pedido de consulta à comunidade, levada a cabo em regime de urgência. O Conselho de Pesquisa e Extensão havia há pouco, apreciado o pedido de suspensão de calendário realizado pela Adufes, uma discussão e demanda do sindicato que havia surgido ainda em meados de Abril. Alguns colegas, durante as reuniões virtuais, me mandavam mensagens no privado perguntando o que implicava na prática essa sugestão de suspensão de calendário; uma pergunta que eu também havia feito duas semanas antes sem obter uma resposta satisfatória. Outros confidenciavam, reclamavam e não compreendiam a pressa em se resolver a questão.
Apesar da consulta à comunidade acadêmica sobre o tema realizada pela administração central e das diversas lives e materiais textuais disponibilizados online pela Adufes sobre a demanda, julgo que o processo pelo qual passamos não foi democrático o bastante. E assim avalio porque, apesar dos convites ao diálogo, faltou escuta atenta e real. No meu campo de estudos específico, existe uma distinção entre ouvir e escutar, que nos é bastante cara e que pode nos ajudar a aprender com os processos que vivemos hoje.
De um lado – e explicando de maneira rápida e grossa – ouvir remete à percepção sensória corporal pura e simples do som, de outro, escutar implica em voltar o foco da atenção aos sons que ouvimos. Não se trata de uma distinção que diz respeito à atividade ou passividade dos processos auditivos, mas aos seus modos mais imediatos, táteis e urgentes ou cognitivos, racionais e de longa duração. A escuta demanda atenção e cuidado aos sons para percebê-los como aquilo que realmente são, e não como o que pensamos que eles sejam. Mas a escuta demanda também tempo, não só de atenção aos ruídos e barulhos, mas também de aprendizado e treinamento auditivo, para que não sobreponhamos aos sons nossas expectativas e preconceitos, a fim de perceber aquilo que os sons podem querer nos dizer.
Para enfrentar o recrudescimento do autoritarismo a que estamos submetidos na esfera federal, penso ser necessário radicalizar os processos democráticos. E isso demanda processos difíceis nos meios e ferramentas ofertados pela democracia representativa a que estamos acostumados: como tirar rapidamente e com urgência decisões colegiadas que serão defendidas por nossos representantes nas instâncias superiores onde nos é ofertada apenas a opção de voto favorável ou contrario a uma proposta que, debatida, nos oferece outras possibilidades de deliberação? No caso da suspensão do calendário, vivi isso nas três reuniões em que participei, uma de departamento, duas de colegiado.
Em todos os encontros defendi que deliberássemos não pela manutenção do calendário vigente, nem pela sua suspensão pura e simples, mas por uma readequação do calendário à situação de trabalho demandada pelo isolamento social, o que implicaria na suspensão do calendário vigente e elaboração de um novo calendário que desse conta das atividades que estamos todos efetivamente realizando – inclusive na elaboração e planejamento dos planos de contingência e de retorno às atividades de ensino, nas quais a discussão da Educação a Distância tem se mostrado um cavalo de batalha central. Apesar de minha proposta ser incluída nas atas desses encontros, e até tomada como a decisão final em uma das reuniões de que participei, sinto que o sistema democrático representativo universitário não me escutava verdadeiramente, apenas me ouvia, na medida em que não importasse quais as deliberações de nossas instâncias colegiadas, nossos representantes deveriam votar, nas instâncias superiores, somente a favor ou contra a suspensão do calendário, o que efetivamente aconteceu na reunião do Centro a que estou vinculado. Ou seja, apesar de meus colegas me escutarem e até acatarem uma terceira resposta à consulta, o sistema representativo ao qual estávamos todos submetidos apenas escutaria duas respostas possíveis, o sim ou o não, ignorando todas as outras alternativas ouvidas. Assim, a convocação do CEPE, por sua urgência e necessidade rápida de resposta, não foi capaz de escutar nossas demandas e debates acerca da suspensão do calendário.
Por outro lado, também a Adufes não nos escutou devidamente durante o processo, muito embora tenha sido elogiável os esforços da entidade em promover espaços de diálogo e mecanismos de acesso a informação sobre o tema durante os meses de Abril e Maio. Neste período, realizou lives, produziu pareceres jurídicos, circulou textos por meio dos quais procurava mostrar ser possível suspender o calendário e manter as atividades de emergência e contingenciais, os auxílios a estudantes, as contratações de professores substitutos e de funcionários temporários, enfim, manter a UFES funcionando no período de crise com vistas a dar suporte a sua comunidade diante das carências e dificuldades. Ainda assim, ela não nos escutou devidamente, pois não conseguia entender o que dizíamos.
As lives mais pareciam pronunciamentos presidenciais em que a instituição repassava aos associados suas diretrizes, enquanto, no espaço de comentários ao lado da tela, pululavam perguntas – em meio a elogios e cumprimentos – que não tinham espaço de resposta. Os textos e pareceres que circularam diziam das condições de possibilidade da suspensão do calendário e não respondiam a nossas perguntas. Muitos de nós, eu inclusive, ao querer saber em que implicava a suspensão do calendário, quais as vantagens de suspender e as desvantagens de não suspender, éramos remetidos – com frases por vezes desdenhosas ou condescendentes – a textos – alguns escritos em jargão jurídico de difícil compreensão para quem não é da área – que nos diziam que era POSSÍVEL demandar a suspensão, sem nos apresentar PORQUÊ suspender, o que ganhávamos, com essas demandas. Em síntese, a Adufes nos ouvia, mas não nos escutava já que identificava em nossos questionamentos aquilo que não perguntávamos e assim nos remetia a respostas que não nos atendiam.
É preciso enfrentar o autoritarismo da esfera federal a que estamos submetidos com mais democracia, uma democracia cada vez mais radical e horizontal, que demanda mais escuta e desaceleração das discussões e tomadas de decisão. No processo, temos que aprender a reconhecer traços autoritários que ainda residem em nós, aprendendo que escutar verdadeiramente o outro implica em identificar no que ele diz aquilo que quis dizer, e não o que achamos que ele disse. Aprender a escutar, portanto, é aprender a sair de nosso lugar para acessar o lugar do outro e assim construir, coletivamente, soluções que atendam da melhor forma possível o maior número dos interessados. Ou pelo menos saber que as soluções que encontramos podem ter implicações negativas na vida dos outros, e que é preciso encontrar, então soluções para esses novos problemas criados.
Se há algo que a discussão acerca da suspensão do calendário me fez aprender é que uma escuta mais atenta pode oferecer uma solução dentre outras possíveis para nossos enfrentamentos políticos mais gerais. A distância provocada pela pandemia nos coloca novos problemas – e um deles é o da escuta – que precisamos enfrentar: como continuar fazendo o que fazíamos se estamos impedidos de fazê-las das formas que antes fazíamos? Em tempos de isolamento social, escutar torna-se ainda mais difícil, pela falta do contato direto com nossos interlocutores. Precisamos, portanto, encontrar outras maneiras. Como então escutar realmente quem não está face a face? É nesse sentido que acredito que aprender uma nova escuta em isolamento social pode ser uma forma de educação – pensada como aquilo que nos tira do lugar onde estamos e nos leva para lugares novos – a distância.
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