Da “pandemia” do fim ao “fim” da pandemia

Desde a queda do muro de Berlim e do fim do pacto de Varsóvia, nos anos 1990, vários intelectuais, alinhados com os grupos hegemônicos, vociferavam, numa esquizofrenia atualista, uma epidemia do fim. Para eles, junto com o fim do socialismo real, também estaria, em progressão fúnebre (como algo necessário, desejável, inevitável e ou inexorável), o fim do Estado. Profetas do cinismo e da morbidez, mais comemoravam do que anunciavam o que seria, para eles, o fim das esquerdas, o fim dos sindicatos, o fim dos empregos, o fim do motor da história, o fim da luta de classes e, por que não, o fim da história. Outros, discípulos dos primeiros, mais adiante, mais afoitos que informados, mais oportunistas do que éticos, nos meados dos anos 2000, diante de uma nova revolução industrial (inteligência artificial e indústria 4.0), anunciavam a morte do trabalho manual e da veiculação material e interpessoal da cultura e do conhecimento. Prognosticavam o fim do livro impresso, o fim da indústria fonográfica, o fim dos professores, o fim da educação como experiência interpessoal. Com a internet o a inteligência artificial tudo se tornaria volátil e efêmero, era também o fim da duração, pois tudo que permanece envelhece.

Com um pensamento cartesiano baseado numa visão “etapista” da história, esses intelectuais operavam e operam uma lógica na qual dicotomizam “fim” e “início”, “início” e “fim”. Mas à luz de Hegel e Gramsci, esses mesmos intelectuais, porta vozes dos vencedores, não passam de equivocados e oportunistas. Falsos visionários do futuro real, elaboram profecias que se auto cumprem. Prometem a todos um misto de empreendedorismo e mobilidade social, mas no fundo legitimam o desemprego e o abandono. Pregam uma história linear e evolutiva na qual a humanidade caminha sempre para frente, mas escondem que o futuro do capitalismo é a barbárie. Transmutam o velho de novo, escondendo o seu apodrecimento.

Porta vozes do capital, atualmente, a hegemonia neoliberal, ao se alimentar do neoconservadorismo, ataca sem escrúpulos democráticos os valores do Estado de bem-estar, corroendo as bases legais e constitucionais dos direitos sociais, duramente conquistados no processo civilizatório que ainda restou do desenvolvimento capitalista. Com um pensamento de viés cada vez menos ético e mais darwinista, tenta viabilizar a mercantilização de tudo e buscam engendrar em tudo a condição de mercadoria. Querem monetizar necessidades humana fundamentais sem as quais não há dignidade humana. Nos seus discursos, repugnam a existência de bens materiais e culturais que necessitem ser providos por uma estrutura estatal a todos, do nascimento à velhice. Sistematicamente, anunciam o fim do direito ao trabalho, do direito à vida, do direito à saúde, do direito à segurança, do direito à previdência social, porque os tempos são outros e é reacionário ser solidário. Ressoando uma pandemia do fim do estado de bem estar.

Mas a história é um livro aberto que o capital não governa. Assim, na virada dos anos 2019 para 2020, constatou-se a emergência de um vírus que se alastrou de forma epidêmica na Ásia e se propagou de forma pandêmica para todo o mundo. Nesse momento, a história não se repetiu nem como a tragédia (como na gripe espanhola) nem como a farsa (como crise dos mercados em 1929 que foi salva pelo new deal de “rooseveltiano” e “keynesiano”). Nesta pandemia do coronavírus, com a morte de mais de um milhão de pessoas, também não faltam aqueles que anunciam o fim da humanidade ou o fim da economia capitalista. Mas, na verdade, o que se viu foi o fim do “fim do Estado” e sobretudo o fim do “fim da saúde” e o fim do fim da assistência na sua forma estatal. O que se viu foi que a quase morte do investimento público na produção de remédios e de pesquisa para produção de vacinas, combinada com a já moribunda saúde pública, foi o fim de muitas pessoas, mas não foi (até agora) o fim da humanidade, mas quase foi o fim do capital.

Além das vidas e da economia, dentre as vítimas mais cruéis da pandemia, vimos o fim, pelo menos provisório, mas real, da interação humana. Nesse momento, o isolamento impediu parte da produção humana coletivizada e as atividades interpessoais, denominadas agora como aglomerações perigosas e mortais. Sem escola, sem lazer, sem festa, sem celebrações, sem cultos, nos restou o trabalho remoto, a escola remota e a uma vida medíocre sem abraço e sem olhar do outro.

Hoje perguntamos o que vem primeiro: o fim da pandemia ou o nosso fim. Para aqueles que já se foram, a resposta é óbvia. Mas para os que sobreviveram ou querem sobreviver, antes de uma vacina universalizada, sem discriminação geográfica, política, etária, étnica e religiosa, não temos o fim da pandemia, mas nosso fim não como sociedade, mas como indivíduos se coloca. Antes, porém, desde já, colocamo-nos a urgência em retomar a vida normal, defendendo o fim do medo, o fim da saudade para salvar a economia do seu fim. Nesse imbróglio somos as vítimas de notícias falsas e manipulados por uma onda sem fim de fake news.

No Brasil, a educação já não presencial, leva seu caráter dual ao paroxismo. Os velhos discursos que enterraram os direitos sociais e as políticas públicas de inclusão sócio digital perdem seu efeito e nos damos conta de que o acesso a bens tecnológicos, portas de entrada para o conhecimento, não foram, em nada, universalizados, e que consumir smartphones e redes de internet para a maioria da população representa não comer, não morar e ou não existir. Neste momento, adianta-se o falso fim da pandemia, o que pode ser o nosso fim.  Vemos mais do que viva a pandemia da ignorância de gestores estatais que, em nome da democracia do ensino, promovem a volta dos estudantes às escolas numa realidade sem vacina. Melhor e mais simples seria que escolas públicas e particulares, nos moldes dos velhos telecentros e lanhouses públicas, se abrissem para que os mais pobres pudessem acessar as máquinas e as redes de internet, e não as aulas presencias. Quem vai salvar nossos professores e estudantes do fim do bom senso e da razão? Quem nos protegerá enquanto a pandemia do fim não for substituída pelo fim da pandemia?

*Marcelo Lima – Pedagogo e Mestre em Educação pela UFES, Doutor em educação e Pós-doutor em historiografia de Trabalho-Educação pela UFF, Professor Associado II do DEPS-UFES, Coordenador do GT “Trabalho e Educação” (09) da Anped, Membro do PPGE-UFES e do Vice-Líder do GETAE (LAGEBES).

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