Do urso ao tatu

Texto da sessão “Fala, docente”

Não morro todos os dias. Mas tenho sonhado ser um urso ávido por hibernar fora de estação. As coisas parecem estar fora do lugar. Corromperam o eixo da Terra. Estamos vivos para cumprir tabela. Mecanizamos até a felicidade, de tão imediatista que se tornou. Banalizamos a vida, formatando-a em redes sociais, numa espécie de ditadura da felicidade instantânea. O pessimismo é o cadáver que carregamos às nossas salas de conveniências. Nem notaram, no comprimento cordial do dia, o corte nas mãos. “Estamos vivos!” Dirá o vivo esperançoso. Balançamos a cabeça em concordância, esvaziada por lítios e outras químicas legais que carregamos na emergência à vida. Há silêncio na cidade dos cegos. Balançamos nossas bandeiras acenando algum sentido possível entre nós. Sim, buscamos os nós coletivos que nos unem. Que nos redimam da mesmice cotidiana e poderosa que insultam a nossa capacidade de nos enxergarmos fora do espelho egóico. Buscamos ecos ou força motriz que revele a multidão. Que revele o grito às nossas diferenças e semelhanças, os nossos horrores e belezas. Gritemos como um verdadeiro primata, não como o burocrata desejoso por papeis, títulos e reconhecimento meritocrático. Mas o primata primordial despido diante da barbárie civilizacional e caduca. É urgente o bicho que recrie artefatos de infância: pipas, pios, peões e asas. Faltam asas que não sucumbam à lei da gravidade. Inventemos não mais o ser humano tal como se fez e educa. Mas um ser que saiba voar fora da asa. Não há inocência ou fuga nesta proposição, mas um ato lúdico e de sonho, que não a do urso hibernando ao som do silêncio incômodo da morte lenta, não é mesmo, senhor tatu canastra?!

*Gilfredo Carrasco Maulin – Aymara, Paceño, Tijucano, Manezinho da Ilha, Capixaba. Professor da Educação do Campo/UFES. Formado em Ciências Sociais/UFPR. Mestre em Sociologia Política/UFSC. Doutor em Educação/UFES. Autor do livro de poesias e desenhos Descaroço, Cousa Editora, 2020.

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