Forma como conteúdo: o que nos diz a condução da discussão sobre implementação de EaD nos cursos presenciais da UFES?

Há uma máxima no campo da pragmática segundo a qual todo dizer inscreve um fazer. Quando enuncio, não apenas afirmo, não apenas constato, mas performatizo alguma ação no mundo. Depreendemos, assim, que, de igual forma,  aos nossos atos também equivalem sempre dizeres ou enunciados.

As ações empreendidas em nossa universidade a respeito da implementação de carga-horária EaD nos cursos presenciais da Ufes estão em curso, tendo como referência a Portaria nº 2.117, de 6 de dezembro de 2019, do Ministério da Educação de Bolsonaro, que ampliou a possibilidade para a inserção de até 40% de EaD. Anteriormente, em normativa de 2018, a autorização era para que se implementasse até 20%.

Enfatizamos as palavras possibilidade e autorização para registrar, inicialmente, que há total autonomia de nossa instituição para construir uma resposta coletiva própria a esse respeito, uma vez que a adoção de eventuais porcentagens de EaD em nossos cursos não é compulsória. A autonomia nos garante, inclusive, a prerrogativa de sequer fazer a discussão caso afirmássemos, enquanto instituição, a presencialidade no ensino como valor inalienável à educação de qualidade e socialmente referenciada.

Contudo, o modo como este tema tem sido pautado na UFES e o desenrolar das discussões dão a ver a existência inequívoca de um interesse institucional em avançar na EaDização parcial que seja de nossos cursos. Para esta constatação, obviamente não nos baseamos no que é dito por agentes institucionais em reuniões ou escrito em documentos, mas na forma promovida pelos gestores para dar relevo à possibilidade de alterar a modalidade de oferta. Que forma é essa?

Vamos recapitular, em 2021, foi constituído um  Grupo de Trabalho (GT) EaD nos cursos de Graduação da Ufes, com o objetivo de discutir a inserção de porcentagem de carga-horária não presencial em nossos cursos, o que, por si só, já nos “diz” que nossa universidade não fará uso de sua prerrogativa para afirmar a presencialidade e, portanto, nem tampouco para vetar a tentativa do governo Bolsonaro de virtualizar senão a totalidade, imensa parte do ensino superior, de graduação e pós-graduação. Registre-se que se trata de uma proposta oriunda de um governo ultraliberal, que efetivou franca política de terra arrasada em nosso país por quatro anos, com requintes de perversidade para as universidades e institutos federais. 

Sabemos que, no final de 2021, o referido GT fez consulta a coordenações de curso de graduação sobre eventual interesse em implementar porcentagem de EaD na re-elaboração de seus PPCs, recorrendo a formulário diagnóstico. Além de seu caráter tacitamente sugestivo, tal consulta – sem que explicite textualmente a intenção – naturaliza a ideia  de que decisões nessa seara cabem às unidades, ou seja, supostamente não requerem a construção de uma política institucional. A consulta equivale a um enunciado implícito afirmativo de que, sim, estaria em curso a (indicação de) implementação de modalidade híbrida em cursos hoje totalmente presenciais. Na Ufes, não há normativa autorizando EaD nos cursos presenciais e, portanto, ao invés de construir coletivamente uma posição institucional, opta-se por delegar às unidades uma decisão seríssima, que tem implicações não apenas para a qualidade da formação que oferecemos, mas, sobretudo para nossa própria concepção de educação e de universidade.

Quais outros dizeres estão implícitos em quais outras ações institucionais concretas nesse processo de discussão do EaD nos cursos presenciais de graduação? Quando agendam-se reuniões cujas convocatórias indicam que o público-alvo se constitui de membros das câmaras locais de graduação, ficam patentes um tratamento restrito do tema e uma inversão. Tratamento restrito porque  a comunidade acadêmica é muito maior e, portanto, mesmo tendo havido, por exemplo,  em duas reuniões virtuais  – 01 e 02 de dezembro  de 2022, em Goiabeiras e no Ceunes, respectivamente, pronto atendimento à solicitação feita pela Adufes para que pudesse participar, caberia convite formal não só ao sindicato, mas também à base docente, discente e de técnicos para um real e amplo debate. A inversão, por sua vez, se detecta no gesto de partir de instâncias que compõem a estrutura da universidade, constituídas, portanto, de representantes da base de nossa comunidade acadêmica e não da comunidade em si, ao invés de partir da base. A importância e contribuição histórica das Câmaras Locais e da Câmara Central de Graduação são incontestáveis, daí designarmos como inversão e não como  improcedência a discussão no âmbito das Câmaras, pois também deve ser feita lá.  Que dizer se depreende de uma ação que envolve a discussão com aquelas e aqueles que conduzem, propõem, aprovam, tramitam eventuais alterações nos PPCs antes de discutir (se vierem a discutir) com o conjunto da comunidade acadêmica? O enunciado tácito é A decisão está sendo tomada

Interessa-nos essa fala  subcutânea – nem sempre explícita, nem sempre consciente ou intencional, mas  que, com atenção e rigor crítico, extraímos dos encaminhamentos, gestos e abordagens dos processos que definem nossa vida cotidiana de trabalho e estudo na UFES. É essa fala presumível nos encaminhamentos dados pelas instâncias de nossa universidade  que reclama de nós ação-resposta.  Neste breve ensaio, ativemo-nos à forma como tem se dado a discussão sobre a implementação de até 40% de EaD nos cursos presenciais da Ufes. Não chegamos a entrar no mérito, embora tenhamos apenas sinalizado nossa contrariedade e defesa intransigente da presencialidade como valor para a educação pública de qualidade. 

Desejamos e trabalhamos para que nossa universidade supere a cultura do silêncio e do silenciamento, evidenciados de múltiplas formas, por mais que, na superfície, se possa sempre alegar que discussões estão sendo feitas (mas com a participação de quem? sob quais condições e subsídios? por meio de quais canais? garantindo quais formas de divulgação prévia, de publicização do material que se produz – dados, pareceres, gravações de reuniões realizadas –  para uma análise fundamentada por parte de nossa comunidade?), por mais que se possa garantir, oficialmente, que não há decisões previamente tomadas (mas basta afirmar isso, quando a condução da discussão não deixa dúvidas de que é exatamente o contrário?); desejamos e trabalhamos para superar a cultura da concentração dos processos decisórios em espaços que, talvez sem a intenção, mas pela força de um hábito cristalizado e perverso, alijam a comunidade da participação determinante para a construção de uma universidade popular.  Deixamos, abaixo, alguns links que endereçam o mérito da questão, nos quais fundamentamos nossa posição contrária a esse legado ampliado por Bolsonaro, que nos cabe rechaçar com todas as nossas forças, tanto quanto a parede de denso concreto construída há décadas para garantir que a vontade de nossa comunidade não transponha esses limites.

1) Vídeo sobre a importância da presencialidade no ensino superior, com Dermeval Saviani.

2) Artigo publicado na revista Universidade e Sociedade sobre a falácia do ensino remoto, assinado por Ana Carolina Galvão e Dermeval Saviani.

3) Vídeo sobre o ensino remoto, com Dermeval Saviani, em palestra para a Adufes.

4) Vídeo sobre o Reuni Digital com Alan Kenji e Priscila Chaves – “Financeirização do ensino superior e Reuni Digital nas universidades públicas”.

5) Análise de Olinda Evangelista e Priscila Chaves, publicada na seção “Fala, Docente”, do site da Adufes.

*Junia Zaidan – Junia Claudia Santana de Mattos Zaidan é linguista, tradutora, escritora e professora do Departamento de Línguas e Letras da Ufes desde 2005. Coordena o Programa de Extensão Observatório de Tradução. É integrante do Grupo de Trabalho de Política de Formação Sindical, do Grupo de Trabalho de Comunicação e Arte e presidenta da Adufes.

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