Impeachment de Bolsonaro – Aula aberta no dia 28/04/2022

A minha fala tem dois objetivos: o primeiro é oferecer alguns apontamentos para o debate sobre o crescimento do fascismo e os desafios da resistência democrática. O segundo é fazer o primeiro lançamento da plaquete Impeachment: o julgamento do presidente bolsonaro pelo senado federal, publicada em março de 2022 na versão epub, pela editora e-galáxia, e no prelo na edição impressa pela Butecanis, que preparará apenas 22 exemplares artesanais.

Para evitar discussões desnecessárias, vale a pena deixar claro que a minha fala não se refere ao fascismo de Estado consolidado, tal como na Itália de Mussolini. Eu me refiro à mentalidade fascista presente no Brasil, de forma cada vez mais explícita desde 2018, tanto nos discursos e práticas de políticos e celebridades ligados ao presidente bolsonaro, quanto nos cidadãos comuns. E o fascismo de Estado como ameaça concreta. Pois a mentalidade fascista pode levar ao fascismo de Estado.

O que é fascismo? Grosso modo, fascista seria todo regime político autoritário, antidemocrático, nacionalista, baseado na força, na censura e na supressão violenta da oposição. As características principais são as seguintes: culto ao líder, que pode ser il duce, como Mussolini, der Führer, como Hitler, ou o mito, como Bolsonaro; os fascistas andam uniformizados, seja como camisas pretas, verde-amarelas, suásticas ou bandeiras; eles têm um inimigo ao qual atribuem todos os males do país – sejam os judeus, os comunistas ou o PT; defendem a violência e o militarismo; os fascistas costumam ter uma pauta política única, ignorando as múltiplas necessidades da população; os fascistas são conservadores e distorcem a tradição, defendendo um conceito único para ideias abrangentes como pátria e família; tem desprezo pelos Direitos Humanos; anti-intelectualismo e simplificação da linguagem (reduzida a slogans, gritos de guerra ou hashtags); patriotismo exagerado. Alemanha acima de tudo, “Deutschland über alles”, era o slogan da Alemanha nazista. “Brasil acima de tudo é o slogan de Bolsonaro.

Além dessas características gerais, eu incluo o niilismo. Parafraseando Nietzsche, eu defino o niilismo político como o cansaço do povo brasileiro com a situação política do país. A visão da política agora cansa – o que é hoje o niilismo, se não isto? Nesse sentido, o discurso niilista pode ser considerado uma indignação sem direção, um grande desabafo inoperante, que gera a indiferenciação axiológica do “tudo é igual e nada faz sentido”. Exemplo disso são os discursos que igualam Lula e Bolsonaro. Nesse sentido, o niilismo é oposto à utopia. A utopia nega valores instituídos a fim de defender outras perspectivas. O niilismo apenas nega e não defende nada.

As eleições de 2014 e 2018 foram marcadas por essa visão niilista, com eleitores cansados da política e dos políticos. Sem uma concepção ética subjacente, as pessoas passaram a adotar o princípio do mal menor. Muitos eleitores insatisfeitos escolheram seu candidato a partir desse princípio: dos males o menor. Para tirar o PT, considerado o mal maior, votaram em Aécio Neves, que por pouco não foi eleito, e Jair Bolsonaro.

Quem soube se aproveitar da situação e conseguiu preencher esse vazio niilista foi a extrema direita. Surgiram uma série de “incitadores da turba”, categoria usada pelo filósofo Theodor Adorno no ensaio Teoria Freudiana e o Padrão da Propaganda Fascista para expressar a atmosfera de agressividade emocional promovida com o intuito de provocar na multidão a ação violenta sem qualquer objetivo político sensato. Assim como os fascistas norte-americanos descritos pelo filósofo de Frankfurt, os agitadores brasileiros preocupam-se pouco com questões políticas concretas e tangíveis. A maioria esmagadora de suas declarações são Fake News e fantasias sexuais como o kit gay e a mamadeira de piroca.

O fascismo de bolsonaro pode ser classificado como “cristofascismo”, conceito criado pela teóloga alemã Dorothee Sölle em 1970 para descrever segmentos das igrejas cristãs que ela caracterizou como totalitários. No Brasil nós temos a Frente Parlamentar Evangélica do Congresso Nacional, que trava uma “batalha espiritual” contra os Direitos Humanos e o Multiculturalismo. A sua Teologia da Batalha Espiritual, que inclui discursos de ódio e práticas de intolerância religiosa, tem ganhado força nos últimos anos, com fortes poderes eclesiástico, econômico, midiático e político.

A bancada evangélica é um bloco suprapartidário que desempenha uma função policial, pois se articula apenas quando há convergência em temas institucionais e morais, especialmente em duas situações: garantir privilégios para algumas igrejas evangélicas (tais como concessões de rádio e televisão e isenção de impostos) e impedir que todos os cidadãos brasileiros tenham acesso a direitos liberais básicos que contrariam o moralismo dos deputados da bancada. Assim, eles se opõem a temas como Direitos Humanos, educação sexual, igualdade racial e de gênero, direito ao aborto, eutanásia, descriminalização do uso de drogas, casamento civil entre pessoas do mesmo sexo e criminalização da homofobia. E vale deixar claro que nem todos os evangélicos e nem todas as igrejas concordam com as práticas e doutrinas fundamentalistas da Frente Parlamentar Evangélica. Alguns cristãos combatem o cristofascismo.

Os agitadores da turba podem ser pastores, bispos, vereadores, deputados,  jornalistas, empresários ou membros ou organizações não-governamentais. A semelhança entre todos os agitadores é tão grande e os próprios discursos são tão monótonos que, assim que se fica familiarizado com o número muito limitado de dispositivos em estoque, o que se encontra são intermináveis repetições de memes e notícias falsas. Como observou o Professor David Borges, os incitadores da turba fomentam um “medo vermelho” contra qualquer discurso ou comportamento que se pudesse ser enquadrado como sendo “de esquerda”. E tudo o que é de esquerda passa a ser taxado de comunista.

A situação é tão bizarra e surreal que temos cristãos defendendo ódio e violência; ator pornô em defesa da família tradicional; deputado com quase 30 anos de mandatos no Congresso Nacional se elegendo Presidente da República representando a renovação política; notícias verdadeiras acusadas de serem falsas e notícias falsas apresentadas como verdadeiras. O cenário é digno de uma ficção de realismo mágico ou de uma ficção distópica.

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Mesmo com ou justamente devido à ascensão do que há de pior no país e aos desdobramentos dos golpes em matéria de retirada de direitos duramente conquistados pelas classes trabalhadoras ao longo da história, destaca-se a certeza de que é preciso resistir. Resistir a toda arbitrariedade, resistir à crescente opressão das minorias que ousam elevar suas vozes, à repressão e à tentativa de censura mais, ou menos velada, a manifestações artísticas que primam pela liberdade de expressão, resistir à lei da mordaça e contra a propagação dos inúmeros casos de violência.

Faço a vocês pergunta que eu já fiz outras vezes e ainda estou tentando responder: como consolidar a democracia se quase 58 milhões de eleitores – influenciados por notícias falsas e motivados por afetos como ódio e ressentimento – elegeram um Presidente da República que personifica o fascismo, machismo, o racismo, a tortura, o autoritarismo, o imperialismo e o fundamentalismo religioso?

Nós precisamos desenvolver um método crítico capaz de auxiliar na decodificação das notícias falsas veiculadas diariamente e na discriminação de seu complexo espectro de efeitos, identificando os vários códigos ideológicos presentes na cultura da mídia, criando e propondo alternativas contra-hegemônicas e antifascistas. Também precisamos de uma política da memória. E a literatura de livros como Impeachment contribui com isso.

Em suma, se a política não tem sentido a priori, depende de cada cidadão conferir-lhe sentidos na medida em que afirmem seus valores. Que mudanças esperamos? Que sociedade queremos? O que caracteriza um país melhor? Que política desejamos? Sobre essa nossa decisão política e existencial se fundamenta a possibilidade de resistência ao niilismo e ao fascismo.

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Agora eu gostaria de apresentar o livro Impeachment: o julgamento do presidente bolsonaro pelo senado federal, publicado em março na versão epub, pela editora e-galáxia, e no prelo na edição impressa pela Butecanis, que preparará apenas 22 exemplares, a mão e a facão.

No gênero da história alternativa, a narrativa de ficção, nomeando o presidente bolsonaro com iniciais minúsculas, imagina o que aconteceria se o Senado Federal cassasse o mandato do presidente genocida por crimes de responsabilidade e crimes contra a humanidade.

Escrita não-criativa, o texto de Impeachment é um tecido de citações que se insere em tendências contemporâneas como cultura copyleft, cultura do remix, movimento open source, escrita não criativa, literatura sampler e poética da citacionalidade, questionando permanentemente o gesto da escrita original.

Na introdução, o personagem Isaías Caminha, escrivão do processo de impeachment, afirma ter selecionado, com o auxílio dos escrivães Bartleby, Turkey e Nippers, os principais depoimentos, questões de ordem e votos das 7.000 laudas de falas taquigrafadas, para oferecer aos leitores uma narração com início, meio e fim, em fusão com a realidade sociopolítica.

A protagonista do livro é a Senadora Vana, Presidenta do Senado Federal e presidenta do processo de impeachment de bolsonaro. Dentre as testemunhas de defesa encontram-se personagens inspirados em Olavo de Carvalho, Flávio Bolsonaro, Eduardo Bolsonaro e Carlos Bolsonaro. Os destaques da acusação são personagens baseados no ex-presidente Lula e no ex-deputado Jean Wyllys.

No evento transmitido ao vivo por Facebook, Instagram, YouTube e TikTok, o Presidente da República é condenado pelos seguintes crimes de responsabilidade, todos baseados na existência de indícios suficientes de autoria e materialidade, conforme se pode verificar pelas provas documentais, testemunhais e periciais exaustivamente apresentadas: crimes contra a existência da União (art. 5º, incisos 3, 7 e 11 da Lei nº 1.079/1950); crimes contra o livre exercício dos poderes legislativo e judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados (art. 6º, incisos 1, 2, 5, 6 e 7 da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950); crimes contra o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais (art. 7º, incisos 5, 6, 7, 8 e 9, da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950); crimes contra a segurança interna (art. 8º, incisos 7 e 8 da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950; crimes contra a probidade na administração (art. 9º, incisos 3, 4, 5, 6 e 7, da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950); crimes contra a guarda e legal emprego dos dinheiros públicos (art. 11, inciso 5, da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950); crimes contra o cumprimento de decisões judiciárias, (art. 12, incisos 1 e 2 da Lei nº 1.079/1950); epidemia com resultado de morte (art. 267, § 1º do Código Penal); infração de medida sanitária preventiva (art. 268 do Código Penal); charlatanismo (art. 283 do Código Penal); incitação ao crime (art. 286 do Código Penal); prevaricação (art. 319 do Código Penal); crimes contra a humanidade, nas modalidades extermínio, perseguição e outros atos desumanos do Tratado de Roma (Decreto nº 4.388, de 2002).

No desfecho, uma irônica advertência sem assinatura afirma que a obra de ficção foi baseada na livre criação artística, sem compromisso com a realidade e que qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência, pois o texto literário não seria uma reprodução da realidade.

No posfácio, o professor do Instituto Federal do Espírito Santo e vocalista da banda Lordose, Adolfo Oleare, conclui que o personagem Iaías Caminha e Vitor Cei, “suposto autor da obra, dariam orgulho ao Lima Barreto dos ríspidos tempos nos quais a lucidez forjou o Diário do hospício”.

Referências

 ADORNO, Theodor. A teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista. Margem Esquerda, n. 7. São Paulo: Boitempo, 2006.

ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. Trad. Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.

CEI, Vitor; BORGES, David G. (orgs.). Brasil em crise: o legado das jornadas de junho. Vila Velha, ES: Praia Editora, 2015.

CEI, Vitor; DANNER, Leno; OLIVEIRA, Marcus Vinicius Xavier de; BORGES, David G. (orgs). O que resta das jornadas de junho. Porto Alegre: Editora Fi, 2017.

CEI, Vitor. Impeachment: o julgamento do presidente bolsonaro no senado federal. São Paulo: e-galáxia, 2022.

LOWENTHAL, Leo; GUTERMAN, Norbert. Prophets of Deceit: a Study of the Techniques of the American Agitator. New York: Harper & Brothers, 1949.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

*Vitor Cei – Vitor Cei é professor de literatura no Departamento de Línguas e Letras e no Programa de Pós-Graduação em Letras do Centro de Ciências Humanas e Naturais da Ufes. "Impeachment" é sua primeira publicação de ficção.

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