O papel da comunidade universitária no processo de “reconstrução” do Brasil

A convite do projeto de extensão “Quinta Livre”, do Centro de Ciências Humanas e Naturais (CCHN), participei no dia 17 de novembro da discussão sobre a “reconstrução”¹ do Brasil, compondo a mesa de debate com Mabel Cardoso, Filipe Skiter e mediação de Lara Gobira. Agradeço a oportunidade e busco contribuir com algumas reflexões circunscritas (e breves) sobre o lugar da educação na formação da classe trabalhadora. 

A “comunidade universitária” não é um ente autônomo à sociedade. A universidade, a escola de modo geral, é uma das instituições que compõe o tecido social. Apesar de parecer óbvio, essa explicitação é necessária, para que seja possível observar seus limites e possibilidades. 

Qual a especificidade da “educação escolar” (em qualquer nível)? 

  • Educação é trabalho, pertence à categoria não material, não é exclusivamente escolar. 
  • Deve objetivar produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular a humanidade construída histórica e coletivamente pelo gênero humano (SAVIANI, 2011). 
  • Se desta afirmação retirarmos a diretividade e intencionalidade, a escola (como forma dominante de educação) perde sua especificidade.

A “comunidade universitária”, como um recorte institucional da educação escolar, precisa que seus componentes (estudantes, técnicos e docentes) se compreendam como sujeitos de um espaço privilegiado de produção sistematizada do saber (particularmente científico), de apropriação da riqueza cultural (científica, artística, filosófica), por meio da qual tem condições de objetivar essa riqueza na sociedade.

Para ser sujeito (e não sujeitado), a formação do indivíduo precisa captar as contradições, a historicidade e a totalidade dos fenômenos. Assim, o conteúdo escolar precisa ser selecionado segundo a sociedade que queremos alcançar, sendo fundamental nos orientarmos pela pergunta: qual o nosso projeto histórico?

Uma educação escolar que não seja humanizadora e que não garanta a apropriação das produções mais elaboradas do gênero humano, não forma indivíduos revolucionários. 

Muitas vezes, “revolução” é associada a um processo “violento”, “drástico”, de “mudança abrupta”. É preciso compreender “revolução” em sua positividade, como “ato de revolver” (como é próprio dos humanos!), como possibilidade de transformação profunda.

O período que se avizinha conterá sinais de adaptação, de tentativa de atenuação da luta de classes pela recuperação de elementos democráticos, de pequenos avanços das políticas sociais e melhoria econômica do consumo, mascarando a agudização do capital.

A conquista do poder político depende de uma certa maturidade da consciência de classe, que não se realiza por “saltos” e esperar que eles aconteçam nos leva do nada para lugar nenhum. A crise política não pode ser minimizada ou apagada, porque é o motor do “assalto ao poder”. 

O “assalto ao poder” tem como agentes de sua preparação os movimentos populares, os partidos, os sindicatos, a escola, como meios de educar a classe trabalhadora para conquistar o poder. Nas palavras de Florestan Fernandes (2018, p. 31):

A firmeza da ação revolucionária de classe dependerá, assim, de formas de solidariedade de classe, de consciência revolucionária de classe e de comportamento revolucionário de classe: se o proletariado não estiver preparado para enfrentar suas tarefas revolucionárias concretas, não poderá levar a revolução até o fim e até o fundo, no contexto social imediato e a longo prazo. Os proletários não são marionetes e tampouco desdobram os painéis de uma história que se prefigura de modo inflexível. Na cena histórica, a luta de classes gradua o componente humano e psicológico de toda a evolução. Erros e acertos repontam aqui e ali, favorecendo ora a burguesia, ora o proletariado. A classe que não souber aproveitar as oportunidades, terá de pagar um alto preço.

Portanto, a revolução social nos exige construir uma consciência de classe revolucionária. Vai daí a importância da comunidade acadêmica na “reconstrução” do Brasil. 

A ação revolucionária que cabe à educação escolar é a transmissão dos conhecimentos mais desenvolvidos e isso tem lugar de classe. Conforme Saviani (2007, p. 61): “O dominado não se liberta se ele não vier a dominar aquilo que os dominantes dominam. Então, dominar aquilo que os dominantes dominam é condição de libertação”. Portanto, hoje, a tarefa mais importante que temos para a “reconstrução” do Brasil (na educação) é a socialização dos conhecimentos e sua objetivação na sociedade em geral. No entanto, o que dirige a educação escolar hoje, tanto básica quanto superior, não são referências educacionais e pedagógicas que atendam aos interesses da classe trabalhadora.

Exemplos das concepções dominantes que não vão ao encontro da formação emancipatória da classe trabalhadora não faltam. Ranqueamentos institucionais, submissão da produção acadêmica ao modelo produtivista, individualização dos resultados, modelos pedagógicos espontaneístas que levam à responsabilização dos indivíduos por seus “sucessos” ou “fracassos”, formas de gestão centralizadas (ou no máximo por representação, sem discutir com o conjunto da comunidade acadêmica as implicações das decisões), com verniz “democrático”. 

No atual contexto de “reconstrução” do Brasil, diante de todos os ataques sofridos no último período, da situação sanitária que enfrentamos com a pandemia, é fundamental é debater “Como fortalecer o SUS como serviço público de saúde de qualidade” e não “Como vender seus serviços de saúde, sem precisar vender a sua alma”². Essa é a mais recente indecência interna, com a abertura de espaço para uma oficina dessa natureza na X Jornada Integrada de Extensão e Cultura da Ufes.  

Desafios “menos” imediatos (internos e externos):

Existem os desafios “óbvios”: orçamento, prioridade efetiva para educação pública, melhoria de infraestrutura etc. Por isso, saliento um desafio que não é aparentemente óbvio e que tem prevalecido desde sempre na educação: é preciso superar as teorias pedagógicas não críticas, cuja superfície é de criticidade, mas que comprovadamente não atendem às premissas humanizadoras e revolucionárias que desejamos.

Desafios imediatos (internos):

  • Reformulação da Resolução nº 60/1992 (Cepe), pois precariza e intensifica ainda mais o trabalho docente, traz implicações para as atividades de ensino, pesquisa e extensão e assim afeta também as atividades de estudantes e técnicos;
  • Reuni Digital: apesar de parecer haver sinalização de rejeição ao projeto, há um Grupo de Trabalho designado pela reitoria desde março de 2022 (Portarias de pessoal nº 85 e 109) “para realizar a análise e proposição de encaminhamentos do documento Minuta da Proposta do Projeto REUNI DIGITAL”. Tal GT é composto exclusivamente por Pró-Reitorias e Secretarias e Superintendências (PROAD, PROGRAD, PROGEP, PROEX, PROAECI, PRPPG, PROPLAN, STI, SRI, SEAVIN e SEAD) e até hoje é desconhecido qualquer estudo realizado pelo GT;
  • Gestão democrática, autonomia universitária e fim da lista tríplice para eleição de reitor(a), por meio da revogação das Leis nº 5.540/68, nº 9.192/95 e do Decreto nº 1916/96. Eleições diretas e finalizadas no interior das instituições, já!
  • Eleger a próxima reitoria da Ufes com nomes que tenham compromisso com uma história democrática, com a ciência e com um programa construído de forma popular.
  • Rechaçar a “oferta de carga horária na modalidade de Ensino a Distância – EaD em cursos de graduação presenciais ofertados por Instituições de Educação Superior – IES pertencentes ao Sistema Federal de Ensino” (Art. 1º, Portaria nº 2.117, de 11 de dezembro de 2019). 

É fundamental que a comunidade acadêmica conheça o conteúdo da Portaria citada. Por exemplo: no Artigo 1º há um parágrafo único que assinala: “O disposto no caput não se aplica aos cursos de Medicina”. Por que será que o curso de Medicina foi “poupado”? Estamos cientes (e concordamos) que as atividades extracurriculares que utilizarem metodologias EaD sejam computadas nesses possíveis 40% (Art. 2º, § 3º)? Nós prestamos atenção que em relação à autorização, reconhecimento e renovação de reconhecimento dos cursos, com a inserção de carga horária EaD, a avaliação dos cursos levará em conta entre seus indicadores as “atividades de tutoria”?

A Ufes já iniciou essa “discussão”. Constituiu um GT (EaD nos Cursos de Graduação Presenciais da Ufes) em junho de 2021 e até agora, pouco dialogou com o conjunto da comunidade acadêmica, como de costume. 

A bola está em jogo! A pressão e a divulgação do que está se passando fez com que o debate fosse conhecido pelos estudantes e chegasse também a técnicos e docentes que não pertencem a Colegiados e Câmaras Locais. 

A Adufes tem feito a denúncia das implicações, tanto do Reuni Digital, quanto da inserção de 40% de carga horária EAD nos cursos presenciais, bem como tem insistentemente reivindicado providências à Administração Central

A hora é agora para intensificar, em unidade, a luta para que essa discussão seja pautada tal e qual foi o “Future-se”: diretamente em sessão aberta do Conselho Universitário, órgão máximo da Ufes, para que publicamente posicione o voto de seus membros e possamos passar ao que realmente importa nesse momento de “reconstrução” do Brasil: lutar pela garantia das condições de vida da população brasileira; pelas condições de existência da educação pública de qualidade; pela formação da consciência de classe das trabalhadoras e dos trabalhadores. 

Referências:

FERNANDES, F. O que é revolução. São Paulo: Expressão Popular, 2018.

SAVIANI, D. Escola e democracia. 39 ed. Campinas: Autores Associados, 2007.

SAVIANI, D. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 11. ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2011.

Notas de Rodapé

¹Utilizo o termo “reconstrução” entre aspas por entender que há em curso uma necessária recomposição de muitas perdas instaladas no governo Bolsonaro, mas não desconsidero que é difícil falar em “reconstruir” o que nunca foi construído. No campo da educação, por exemplo, e mais especificamente no campo pedagógico, nós nunca tivemos uma teoria pedagógica revolucionária como expressão hegemônica.

² https://proex.ufes.br/x-jornada-integrada-de-extensao-e-cultura  Ementa: Demonstrar o que é realmente importante levar em consideração para começar a promover seus serviços no mercado hipercompetitivo da saúde, através de estratégias de marketing 360, posicionamento profissional assertivo e diferenciação da concorrência.

 

*Ana Carolina Galvão – Pedagoga, Doutora em Educação Escola (Unesp), professora do Departamento de Teorias do Ensino e Práticas Educacionais (Dtepe) do Centro de Educação da Ufes. Docente do Programa de Pós-graduação em Educação (PPGE-Ufes), membro do Núcleo de Educação Infantil (Nedi-Ufes) e coordenadora do grupo de pesquisa “Pedagogia histórico-crítica e educação escolar”. Foi presidenta da Adufes de dezembro de 2019 a abril de 2022 e atualmente é coordenadora do Grupo de Trabalho de Política de Formação Sindical (GTPFS).

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