Pedagogia histórico-crítica e educação escolar: primavera nos dentes¹

Pedagogia histórico-crítica e educação escolar: primavera nos dentes

O Congresso “Pedagogia histórico-crítica e educação escolar: primavera nos dentes”, realizado na Universidade Federal de São Carlos, dias 13 e 14 de abril de 2023, dá continuidade a uma série de eventos iniciados em 2009, por ocasião da comemoração dos 30 anos da pedagogia histórico-crítica (Unesp/Araraquara). Em 2012, foi realizado o Congresso “Infância e pedagogia histórico-crítica” (Ufes/Vitória); em 2015, o Congresso “Pedagogia Histórico-Crítica: educação e desenvolvimento humano” (Unesp/Bauru); em 2018, o Congresso “Pedagogia Histórico-Crítica: em defesa da escola pública e democrática em tempos de projetos de escolas sem partidos” (Unesp/São José do Rio Preto). O evento de 2021 foi adiado para este ano devido à pandemia da Covid-19. 

Além destes eventos, cito ainda a comemoração dos 40 anos da pedagogia histórico-crítica, em 2019 no evento intitulado “Pedagogia Histórico-crítica: 40 anos de luta por escola e democracia” (UFBA/Salvador) e a celebração dos 50 anos de carreira do professor Dermeval Saviani com o Seminário “Dermeval Saviani e a educação brasileira: construção coletiva da pedagogia histórico-crítica”, realizado em 2016 (Ufes/Vitória).

Tive a honra de participar de todos estes eventos e por isso agradeço à comissão organizadora, pela oportunidade de estar ao lado do professor Dermeval neste encerramento e pelo empenho para a realização do congresso; pela opção política de fazer o evento 100% presencial, pois sabemos o quão difícil tem sido manter nossas atividades numa perspectiva de não sucumbir à hegemonia de uma educação pautada pelo projeto capitalista de sociedade.

E assim agradeço imensamente por me permitirem reencontrar, abraçar, apertar e chorar de emoção revendo os melhores camaradas com os quais posso andar junto. Os congressos da pedagogia histórico-crítica são as ocasiões em que tenho a maior concentração de amigos por metro quadrado. Saúdo o professor Newton Duarte, meu orientador de doutorado, o professor Dermeval Saviani, meu supervisor de pós-doutorado e a professora Lígia Márcia Martins, que se dedicou e formou vários de nós aqui presentes e, apesar de nunca ter sido minha orientadora acadêmica, é uma orientadora de vida, há mais de 20 anos. 

Minha breve contribuição se pauta por considerações sobre a resistência que precisamos continuar a fazer com a esperança de tempos melhores, com todas as contradições da conjuntura em que vivemos. Busco, assim, contemplar a canção inspiradora do título do congresso e destaco o seguinte trecho (PRIMAVERA, 1973, grifo meu):

Quem não vacila mesmo derrotado
Quem já perdido nunca desespera
E envolto em tempestade, decepado
Entre os dentes segura a primavera

Longe de qualquer interpretação heróica e individualista da resistência, tomo como referência aquilo que o professor Saviani (2015) denominou de resistência ativa, que pressupõe: que ela seja propositiva, organizada, coletiva

Sobre o primeiro aspecto, obviamente nossa proposição está pautada pela pedagogia histórico-crítica. Sobre o segundo ponto (organização e coletividade), entram em cena as entidades ligadas à educação,a exemplo de entidades científicas, como a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped); o Conselho Nacional de Educação (CNE) e o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed); entidades sindicais representativas dos trabalhadores da educação, como a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) e o Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN). Ainda podemos citar os movimentos sociais, partidos e as organizações sociais (OS), como o movimento Todos Pela Educação (TPE), que como sabemos, atua como um vetor do capital na educação. 

A questão passa, portanto, por onde vamos nos organizar coletivamente e com quais entidades podemos contar numa perspectiva contra-hegemônica. 

Por exemplo: o CNE, que tomou posse no final de 2022 e está mantido como tal, tem entre suas conselheiras e seus conselheiros, professores ligados à iniciativa privada, algumas confessionais – seja como docentes, proprietários de escolas ou gestores; pesquisadores de “competências cognitivas” e outras abordagens pós-críticas; formuladores de propostas como a “Alfabetização baseada em Evidências” e currículos (como de Sobral-CE), professores que além do CNE também são representantes em entidades como o sindicato dos mantenedores de instituições de ensino e iniciativas ligadas a Educação a Distância (EaD).

Outro exemplo: Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed). O atual presidente, Vitor de Angelo, é o secretário de Estado da Educação do Espírito Santo. Pela proximidade de sua atuação à universidade na qual trabalho, não posso deixar de denunciar que sua gestão é de preocupação estética e de resultados que atendam aos indicadores de avaliação em larga escala, não sendo efetiva a qualidade da educação capixaba. E faço aqui o registro de minha solidariedade às famílias e amigos das vítimas do ataque que matou com uma arma do Estado, quatro mulheres – 3 professoras e uma estudante – na cidade de Aracruz, no interior do Espírito Santo, onde a comunidade escolar está abandonada à própria sorte, pois as ações do Estado são apenas paliativas e parecem mais voltadas a fazer esquecer do que acolher. 

Estendo minha consternação a todos que sofrem com a violência nas escolas, a exemplo dos recentes fatos em Blumenau (SC) e na Vila Sônia, na capital paulista, para ficar apenas em 2023. Mas destaco que com as devidas proporções e características, também é violência submeter docentes a três jornadas de trabalho para um salário de sobrevivência

É violência submeter estudantes e professores a salas de aula que chegam à sensação térmica de 40 graus. 

É violência negar aos filhos da classe trabalhadora o direito à educação. 

Aproveito para fazer aqui uma saudação à Adufes, o que faço me dirigindo às professoras Luciana Soares, da diretoria da Adufes, e Fernanda Binatti, coordenadora do Grupo de Trabalho de Política Educacional. Duas companheiras da carreira EBTT (ensino básico, técnico e tecnológico), que na Ufes se expressa de forma minoritária e que não só por uma condição numérica, mas também por serem professoras da educação básica e mais ainda, da educação infantil, são sempre alvo preferencial da desqualificação e desvalorização na universidade. 

Voltando ao Consed, ele recebeu o MEC no último dia 5, para apresentação da proposta preliminar da nova Política Nacional de Alfabetização de Crianças. Vamos a alguns problemas que podemos elencar (na verdade, apenas citar) nessa iniciativa de uma “nova” Política Nacional de Alfabetização de Crianças. 

1) Essa Política será construída com base em uma pesquisa para ouvir gestores e professores da área. Na primeira etapa, serão ouvidos docentes de todas as regiões do país (mas não de todos os estados). Serão 341 docentes alfabetizadores, segundo o MEC, pois “são eles que estão dentro de sala de aula todos os dias com os alunos”. 

Acontece que como a “fórmula do sucesso” pende de um lado para outro, sem avançar na superação da compreensão do processo de alfabetização como algo que está para além dos métodos e ainda, como a formação de professores é hegemonicamente pautada pelas pedagogias do “aprender a aprender”, ouvir esses professores só vai servir para reiterar o que os governos têm feito a décadas, pelo menos desde a década de 1980 com o boom construtivista. 

2) Ainda de acordo com o MEC, o objetivo da pesquisa é estabelecer nacionalmente, com base na BNCC, quais os conhecimentos e habilidades de leitura adequados ao final do 2º ano do ensino fundamental. Não há, portanto, nenhuma recusa à BNCC e todas as suas implicações teóricas e de interesses econômicos. 

3) O órgão responsável pela pesquisa é o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). O presidente do Inep, nomeado pelo atual governo, é Manuel Palácios, que foi quem deu início, no governo Dilma, à BNCC. É o criador do Centro de Políticas Públicas e Avaliação da Educação (Caed). Tal Centro organiza seus contratos de assessoria por meio da Fundação Caed, que celebra então os contratos com a Universidade Federal de Juiz de Fora e assim faz convênios de dar inveja a qualquer orçamento de universidade. 

4) Tanto Manuel Palácios e seu Caed, quanto o próprio ministro da educação são entusiastas das avaliações em larga escala, dos resultados que exibem com orgulho e que provavelmente, no caso do ministro, contribuiu para sua indicação. O que nós não vemos nesse “maravilhoso mundo de Camilo” e que é muito comum em diversas redes de ensino, é a bonificação dos professores conforme os resultados, os incentivos fiscais aos municípios com melhores resultados, as parcerias e convênios celebrados com entidades como Fundação Unibanco, Ayrton Senna, Península e Aliança, além da nossa tão generosa Fundação Lemann, que atua nos currículos, na formação de professores, nas políticas educacionais e tudo mais que lhe passar pela frente e que possa ceifar a classe trabalhadora de tomar consciência de sua condição de exploração. 

E só para não deixar passar sem uma palavra, o “novo” ensino médio não tem nada de novo e sua suspensão está longe de ser uma solução. Tudo sempre continua nos rondando mesmo quando a temperatura esfria (reforma administrativa, “novo” ensino médio, Future-se etc.). Os recuos são apenas uma tática dos governos, como já afirmou o professor Dermeval Saviani (2015) na sua análise sobre a LDB e a resistência ativa. 

Assim, escolhendo bem com quais entidades vamos caminhar, para nos movimentarmos de forma organizada e coletiva e retomando a ideia da “primavera nos dentes”, me ocorreu que vamos precisar mostrar os dentes, arregaçar as mangas, avançar com coragem e contundência, sem afrouxar nossas convicções teóricas e nossa ação. 

No próximo período, nossa ousadia será não recuar; não deixar que o “Inferno de Dante” que vivemos no último governo nos amedronte e nem que o lema “união e reconstrução” nos silencie. Sim, nós saímos do inferno, mas alcançamos apenas o primeiro nível do purgatório e temos muito a fazer. No caso da educação, ela se expressou ao longo da história com mais ou menos democracia, mas nunca foi efetivamente emancipatória, revolucionária, como lutamos para que seja. 

Quero finalizar fazendo um destaque muito caro às instituições de ensino superior públicas. Temos hoje dois caminhos por meio dos quais a educação superior pública presencial está ameaçada. 

A Educação a Distância não é nova, mas a pandemia abriu as portas (do inferno de Dante) para toda sorte de precarização do ensino, intensificação do trabalho e desqualificação da formação. Um desses caminhos é o Reuni Digital, já implantado em pelo menos uma dezena de universidades públicas e que preconiza que para que a EaD seja institucionalizada (e alastrada) “seria necessário revogar o Decreto n.º 9.057, de 25.05.2017, que institui a EaD como modalidade de educação, e criar uma diretriz curricular comum nacional para cursos superiores” (BRASIL, 2022, p. 15). Ou seja, não haveria mais diferenciação entre EaD e cursos presenciais. 

O outro caminho de ameaça é a Portaria 2.117/2019, que permite a oferta de até 40% da carga horária dos cursos presenciais na modalidade EaD. Essa portaria altera a permissão anterior, que era de 20%. Detalhe: a Portaria não é aplicável aos cursos de medicina. Outro aspecto a salientar: para o reconhecimento ou recredenciamento dos cursos que adotarem essa inserção, será avaliada a atuação de monitores EaD, o que significa a precarização do trabalho (e com baixa remuneração); formação de profissionais que não acessarão os quadros de docentes das universidades de forma regular (se é que terão acesso); baixa qualidade formativa; enxugamento das instituições e suas estruturas presenciais, pois a relação entre número de estudantes, monitores e docentes se altera significativamente, minimizando concursos, fechando vagas e cada vez mais fazendo minguar o orçamento público para a educação presencial.

Na linha do que afirmei antes, da necessidade de nos mantermos alertas e não dar trégua para mais retirada de direitos, é importante lembrar que o Plano Nacional da Educação prevê aumento das vagas em instituições públicas de ensino, mas não determina que sejam vagas presenciais e, portanto, poderemos assistir o acolhimento da EaD no atual governo, mesmo sendo o projeto do Reuni Digital e as Portarias do MEC que mencionei, forjadas nos governos anteriores recentes. 

Conclamo que cada uma e cada um estejam atentas e atentos, nas suas instituições de ensino, para não permitir que essas decisões sejam tomadas sem ampla discussão e sem nossa resistência para interditar mais esse passo de desqualificação da educação pública universitária.

Relembro a fala da professora Lígia, na mesa inicial deste evento, ao mencionar que a destruição da escola começa pela destruição da formação de professores. Façamos, pois, a relação disso com o curso EaD com maior quantidade de alunos matriculados, que é o curso de pedagogia. 

Finalizo citando o professor Saviani, em seu livro “A nova lei da educação: LDB – trajetória, limites e perspectivas”, para não abrandarmos a luta: 

Enquanto prevalecer na política educacional a orientação de caráter neoliberal, a estratégia da resistência ativa será a nossa arma de luta. Com ela nos empenharemos em construir uma nova relação hegemônica que viabilize as transformações indispensáveis para adequar a educação às necessidades e aspirações da população brasileira (SAVIANI, 2015, p. 465). 

Força,  garra e luta. A classe trabalhadora resiste!

São Carlos, 14 de abril de 2023

Referências:

BRASIL. Ministério da Educação – MEC; Centro de Gestão e Estudos Estratégicos – CGEE. ReUni Digital. Plano de expansão da EaD nas universidades federais. v.4. Brasília: 2022. Disponível em: https://www.gov.br/mec/pt-br/reunidigital/pdf/reuni-digital-volume_04_17-05-22.pdf Acesso em: 27 fev. 2023.

PRIMAVERA nos Dentes. Intérprete: Secos e Molhados. Primavera nos Dentes. Gravadora Continental, 1973.

SAVIANI, D. A nova lei da educação: LDB – trajetória, limites e perspectivas. 12. ed. Campinas-SP: Autores Associados, 2015.

 

¹Fala proferida na mesa de encerramento do evento com denominação homônima.

 

 

*Ana Carolina Galvão – Pedagoga, Doutora em Educação Escolar (Unesp/Araraquara), realizou estágio de pós-doutoramento na Unicamp (2016). Servidora pública lotada no Depto. de Teorias do Ensino e Práticas Educacionais do Centro de Educação. Atua na graduação na área de Didática e Prática de Ensino. Docente do Programa de Pós-graduação em Educação da Ufes. Membra do Núcleo de Educação Infantil, do Grupo de pesquisa “Estudos marxistas em educação” e coordenadora do grupo de pesquisa “Pedagogia histórico-crítica e educação escolar”. É autora de artigos científicos, capítulos e livros, entre eles: “Fundamentos da didática histórico-crítica” (GALVÃO, LAVOURA, MARTINS, 2019), indicado ao Prêmio Jabuti 2020 na área de Educação e Pedagogia e “As perspectivas construtivista e histórico-crítica sobre o desenvolvimento da escrita”, finalista do Prêmio Jabuti em 2016 na mesma área. Foi presidenta da Adufes (dez/2019 - abr/2022) e atualmente é coordenadora do Grupo de Trabalho de Política de Formação Sindical (GTPFS).

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