Permanecer a qualquer custo e concluir de qualquer forma?

A política deve ser concebida como uma atividade cuja finalidade última é sua própria anulação” (MÉSZÁROS, 2006, p. 147).

“O ‘fora’ amacia a dureza do fato que o discurso retrata. E eu não estou no mundo para ocultar nada. Também não há evasão escolar. Neste país há expulsão(FREIRE, 2004, p. 177).

Acabamos de passar por uma intensa mobilização de estudantes pelo direito à alimentação acessível e de qualidade para quem necessita de políticas de permanência estudantil que, mesmo com tal pauta, foram responsabilizados, pela administração central, pelo fechamento do RU e pelo adoecimento de suas/seus trabalhadoras/res. O posicionamento oficial equivocado elide a precarização do trabalho, que também agride as universidades públicas, e a submissão à racionalidade empresarial da qual quase ninguém escapa. 

Tratando de questões correlatas, há alguns meses, o Grupo de Trabalho de Política Educacional (GTPE-Adufes) vem se debruçando sobre a proposta preliminar do Programa Permanecer e Concluir. Proposta elaborada pelas diretorias da Pró-Reitoria de Graduação da Ufes com o objetivo de ampliar a política de acesso, permanência e conclusão dos cursos de graduação pelas/os estudantes e para a qual a administração central da universidade vem solicitando leitura crítica a docentes que integram coordenações de cursos, Departamentos e Centros da Ufes. A proposta vem sendo encaminhada de forma hierárquica, sem realizar efetiva escuta e diálogo sobre as necessidades e vivências das/dos estudantes, seu pertencimento à comunidade universitária e seus desafios em face aos problemas cruciais da sociedade brasileira. O caráter social, econômico-político e cultural não é enfatizado no texto e não há tampouco menção a ações antirracistas, antilgbtqia+, antimisognia e outras formas de violência enfrentadas cotidianamente por discentes. Pensar a realidade das/os estudantes implica pensar e agir para garantir a responsabilidade social da universidade pública. 

Historicamente, toda vez que a classe trabalhadora acessa as instituições originalmente constituídas para finalidades burguesas, essas sofrem processos de degradação patrocinados por seus mantenedores. Isso passa tanto pelo debate da universalização do acesso à educação básica, não verdadeiramente assegurado a toda população brasileira, quanto pela forma como a classe trabalhadora vem acessando o ensino superior nos últimos decênios. Expressões disso são as recorrentes reformas curriculares por que passam a educação básica e o ensino superior que, a cada readaptação às demandas do sistema produtivo, retrai grande parte da rigorosidade e do acesso aos bens culturais e saberes científicos, filosóficos e artísticos historicamente produzidos. 

Ao analisarmos a política de educação superior brasileira dos anos de 1990 aos dias atuais, em que pesem as diferenças entre os sucessivos governos, encontramos um período de profundo processo de contrarreforma neoliberal, estimulada pelos interesses monopolistas, que atravessam a organização da universidade. Vemos que a política de educação superior sofreu forte interferência, uma interferência concedida e associada às frações da burguesia, de forma a garantir uma vinculação ideo-política com os valores dominantes, em que a periferia deve assumir um papel de subordinação econômica na lógica da economia mundial. Concordamos com Lima (2013) ao sinalizar que as alterações na política de educação e, sobretudo, na política de educação superior, ocorrem com base em três necessidades do capital: 1) a subordinação da ciência à lógica mercantil, 2) a constituição de novos campos de lucratividade e 3) a construção de estratégias de obtenção do consenso em torno do projeto burguês no âmbito da hegemonia neoliberal.

A universidade vai se tornando mais permissiva a tais interesses, de forma análoga ao desmantelamento das condições e as relações de trabalho. Torna-se possível e legal a precarização dos contratos com ataques à estabilidade e à realização de concursos públicos; a aparente “flexibilização” dos currículos (que em realidade mantém a rigidez tradicional) serve como abertura a formas de eadização e se acentua a separação entre ensino, pesquisa e extensão. A qualidade é balizada pela produtividade, marca do capitalismo contemporâneo. Importa quanto se produz, em quanto tempo se produz e com que custo se produz, não interessando o que se produz, como se produz e para que (ou quem) se produz. O mercado dita as regras da formação profissional brasileira para o trabalho complexo e até mesmo setores progressistas se veem compelidos a responder positivamente as suas demandas.

Não há como conceber, de forma comprometida, as mudanças por que passa a universidade pública fora desses movimentos que incidem em sua estrutura e motivação. Sobretudo, em se tratando de uma política que atualiza o ideário da flexibilização para falar das condições de permanência estudantil na única universidade pública do território capixaba. 

Já nas primeiras páginas do documento nos chama a atenção a visão positiva conferida ao Programa Reuni (BRASIL, 2007), momento em que a universidade pública passou por uma reestruturação acadêmica e curricular, sob justificativa de se proporcionar maior mobilidade estudantil, formações flexíveis, redução das taxas de evasão, e um quantitativo maior de matrículas. É certo que propostas que alcançaram maior acesso às salas de aula no ensino superior foram importantes. No entanto, é importante lembrar que isso ocorreu concomitante a transferências volumosas de recursos do fundo público para os fundos de acumulação de capitais por meio de programas como o Fundo de Financiamento Estudantil (FIES), o Programa Universidade Para Todos (PROUNI) e o Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento das Instituições de Ensino Superior (Proies), o que ocasionou o elevadíssimo número de matrículas concentradas em instituições privadas (SEKI, 2021), com impacto maior do que o Programa Reuni foi para as instituições públicas. Ademais, como medida para ampliação de cursos e matrículas muito além das condições investidas para isso nessas instituições, currículos e garantias de formação foram flexibilizadas, resultando no aligeiramento da formação no ensino superior, redução da qualidade reivindicada pelos movimentos sociais e, consequentemente, aprofundamento das desigualdades sociais. O Programa em questão ampliou o quantitativo de matrículas e cursos sem assegurar condições adequadas de infraestruturas e sem aumentar, de igual forma, o quadro de docentes e técnicos, o que fez com que as universidades sentissem ainda mais o sucateamento das instituições nos governos subsequentes. 

No que tange aos aspectos pedagógicos, o documento Permanecer e concluir apresenta uma concepção pedagógica que secundariza a importância do ensino de conhecimentos essenciais e reduz os conteúdos e saberes às demandas das avaliações e mercado. Os discursos sedutores de “ações humanizadas de ensino-aprendizagem”, “novas formas de ensinar e aprender”, “colaboração entre os envolvidos nos processos de ensino-aprendizagem” colocam, apenas aparentemente, as/os estudantes como “protagonistas do processo educativo” com participação ativa na construção do conhecimento e destituem a prática educativa de sua dimensão política e pedagógica. Movimento esse que elide as efetivas condições dessa participação protagonista. O documento indica que docentes precisam “inovar” no trabalho pedagógico utilizando metodologias e formas “ativas”, retirando assim os conteúdos do centro do processo de ensino-aprendizagem e, com isso, responsabilizando docentes e discentes pela “evasão”, ignorando a vida cada vez mais difícil e proletarizada da juventude periférica brasileira. Ao que nos parece, os anos de mais ostensivo e desinvestimento em educação e de crise política não foram considerados como impactantes no que diz respeito ao acesso, permanência e conclusão de cursos. Aposta-se na fatalidade pandêmica e desresponsabiliza-se um governo que investiu deliberadamente na desestruturação das esferas culturais e educacionais e que minou de toda forma possível as forças institucionais. 

A democratização efetiva da Educação Superior não acontecerá pela adoção de “metodologias ativas” nem por outras formas de “inclusão digital” ou pedagógicas de não-presencialidade (pois não há saber nem organização política sem convivência). E isso não significa que não precisamos de pesquisas e formação permanente do professorado. Significa que a dificuldade de permanência e conclusão dos cursos de graduação, sobretudo os de menor valorização e prestígio social, da classe trabalhadora é de outra ordem.  

Ao centralizar nos aspectos pedagógicos a resolução dos problemas que impedem a permanência e a conclusão nos cursos da Ufes, negligencia-se qualquer análise crítica sobre as atuais iniciativas consideradas “programas de assistência estudantil” na Ufes. Desconsidera-se o reduzido número de profissionais que atuam na PROAECI, especialmente assistentes sociais e psicólogos, diante de uma demanda cada vez mais ampla de estudantes que se encontram em precárias condições de vida, trabalho e estudos. Desconsidera-se a dotação orçamentária insuficiente para o atendimento, conforme as legislações sociais, de todos aqueles que necessitam da assistência estudantil. Isso faz com que, muitas vezes, o direito à assistência seja negado, visto que os editais de acesso aos programas, ao se apoiarem quase que exclusivamente no critério da renda per capita familiar, acabam reforçando a focalização desses programas e a exclusão de um significativo número de estudantes.

Em tal contexto, preocupa-nos outros pontos que insidiosamente ganham espaço e que se imbricam nessa discussão: a decisão sobre o orçamento público sem o devido diálogo participativo que escute, de fato, as demandas da comunidade acadêmica; a eadização da educação modificando a formas social de nossas universidades; o Reuni Digital não combatido rigorosamente, sem considerar os lucros astronômicos dos conglomerados de tecnologia; o impacto de todas essas questões na saúde de estudantes, docentes e técnicas/os dos espaços universitários, pois estudos apontam que “[…] a medicalização do aprender e a judicialização das questões escolares têm se constituído como dispositivo biopolítico de controle dos modos de existência” (HECKERT; ROCHA, 2012). Em conjuntura de teto de gastos, em que a fragilidade das políticas de permanência não pode recair somente naquilo que é deliberado no interior das universidades, um passo importante para a permanência é o hábito do diálogo amplo, em que a administração da universidade se comprometa com a democratização do orçamento. Outro, igualmente essencial, é o posicionamento crítico contra esses cerceamentos e esclarecimento a toda comunidade estudantil sobre por quem e como as universidades públicas vêm sendo sufocadas, de forma que nada disso seja confundido com inovação

Escrevemos esta resposta, neste momento, como oposição a um processo perverso de intensificação da mercantilização e precarização das nossas IFES, contra a refuncionalização da universidade pública brasileira e contra o processo de certificação em massa, sem séria e assegurada formação da classe trabalhadora. Por rechaçarmos a tendência privatizante da educação superior brasileira, que depende da degradação da formação ofertada pelas IES públicas e do não atendimento às necessidades dessa mesma classe para ganhar espaço, reafirmamos que a permanência estudantil não é, em primeira ordem, um problema curricular ou pedagógico, e sim estrutural, econômico-político e de justiça social.

GTPE Adufes
Junho/2023

 

Referências: 

BRASIL. Decreto n. 6.096, de 24 de abril de 2007. Institui o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais – REUNI.

FREIRE, P. Pedagogia da tolerância. Organização e notas Ana Maria Araújo Freire. São Paulo: Unesp, 2004. 

HECKERT, A. L. C e ROCHA, M. L. “A maquinaria escolar e os processos de regulamentação da vida”. Psicologia e Sociedade. v. 24, 2012. 

LIMA, K. Expansão da educação superior brasileira na primeira década do novo século. In: PEREIRA, L. D.; ALMEIDA, N. L. T. Serviço Social e Educação. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.

MÉSZÁROS, I. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo, 2006. 

SEKI, A. K. Apontamentos sobre a financeirização do ensino superior no Brasil (1990-2018). Germinal: marxismo e educação em debate, [S. l.], v. 13, n. 1, p. 48–71, 2021. 

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