Das janelas de nossas casas, ou das janelas virtuais que agora se abrem com mais frequência para uma parcela da população, assistimos ao crescimento dos contágios e das mortes provocadas pelo novo Corona vírus no Brasil e no mundo. No Brasil, mais de 20 mil mortes oficiais. Em sua maioria corpos de mulheres, pretos e pobres.
Assistimos perplexos e indignados à atuação do governo Bolsonaro com sua política econômica ultraliberal e sua postura de negação da ciência e descaso com as vidas. Nenhuma política séria de enfrentamento aos impactos sanitários, econômicos e sociais da pandemia. O Estado apresenta, sem máscaras, sua natureza de classe. No capitalismo, sua natureza burguesa. Enquanto isso as mortes aumentam. Números ganham nomes, rostos cada vez mais conhecidos.
Dessas janelas também observamos a movimentação governamental oportunista para seguir o projeto de ataques aos serviços públicos, seu funcionalismo e aos direitos que foram duramente conquistados pela classe trabalhadora. Observamos as desigualdades todas (classe, gênero, raça, orientação sexual) sendo escancaradas. E assistimos, aqueles que querem ver, a muitos trabalhadores e trabalhadoras arriscando a vida, ou porque exercem seu ofício em serviços essenciais, ou porque vivem no fio da navalha da informalidade e dos trabalhos mais precários. Ou morrem pelo vírus, ou morrem de fome. Não romantizemos. Não há heroísmo nisso! Há exploração, opressão e descaso do Estado.
Na educação, especialmente na educação superior – essa que uma parcela muito pequena de brasileiros acessa -, estávamos preparando uma greve unificada até sermos duramente atingidos pela pandemia e pelo necessário distanciamento social (principal estratégia para reduzir o avanço do vírus já que ainda não temos remédio e vacina).
Motivos para a greve nunca nos faltaram: a política econômica ultraliberal de Bolsonaro e Guedes, os ataques às universidades públicas e aos trabalhadores do funcionalismo público, a Emenda Constitucional 95, o autoritarismo do governo federal que golpeia a autonomia universitária etc.
Se enganou quem pensou que os ataques ficariam em suspenso com a pandemia. Nesses pouco mais de 60 dias de distanciamento social tivemos, dentre outros, os seguintes agravos:
* No início de março já tivemos o confisco de parte do nosso salário através da nova alíquota da previdência.
* Edição da Portaria 343/2020 do MEC que autoriza, em caráter excepcional a substituição de disciplinas presenciais em andamento por aulas que utilizem meios e tecnologias de informação e comunicação – ensino a distância, exceto nos cursos de medicina, nos estágios obrigatórios e disciplinas que exigem laboratórios.
* Edição da Medida Provisória 28/2020 pelo Ministério da Economia: essa Medida orienta a suspensão do pagamento de auxílio transporte, de adicional noturno e dos adicionais ocupacionais aos servidores e empregados públicos que executam suas atividades remotamente ou que estejam afastados de suas atividades presenciais, ou seja, essa Medida viola direitos funcionais.
* No dia 23 de abril, a página eletrônica do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) informou que haverá chamada pública para a concessão de 25 mil bolsas do Programa Institucional de Iniciação Científica (PIBIC), no entanto, afirma que essas bolsas serão destinadas às chamadas áreas prioritárias, excluindo projetos nas áreas das ciências humanas, sociais, artes, naturais e exatas.
* O Congresso pautou proposta de redução salarial dos servidores públicos. O Senado acatou a exclusão de servidores da educação que estão atuando diretamente no combate à pandemia, mas manteve outras categorias.
* Edição de Portaria da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) que corta bolsas de diversos programas de pós-graduação.
* Na UERN (Universidade Estadual do Rio Grande do Norte) os trabalhadores terceirizados estavam há 3 meses sem salários.
* O governo da Bahia congelou o abono permanência dos servidores públicos até dezembro de 2021.
* Na UEMG (Universidade Estadual de Minas Gerais) e na Unimontes: docentes e técnicos estavam com salários atrasados e parcelados. Parte dos servidores não tinham recebido ainda o 13º salário de 2019.
* O MEC sinalizou mudanças na portaria que regulamenta as atividades docentes do EBTT (Ensino Básico, Técnico e Tecnológico) aumentando a carga horária de sala de aula (e, consequentemente, diminuindo o tempo para as atividades de pesquisa e extensão) e incluindo, em definitivo, o registro eletrônico da frequência. Essas alterações impactam, sobretudo, no trabalho das docentes da CRIARTE/UFES.
* O Ministério da Economia apresentou o programa “Reconstrução do Estado”, que prevê o desmonte total da máquina pública atuando a partir de três eixos: venda de ativos da União, aceleração do programa de concessões e investimentos e reformas estruturantes, para o pós-pandemia.
* Nomeação de Reitor na UFES em que o governo federal não acatou o resultado da consulta democrática realizada pela comunidade acadêmica e nomeação de interventor no IFRN (Instituto Federal do Rio Grande do Norte).
As janelas precisam ser bem grandes para que possamos olhar tudo isso. E não basta somente olhar. De dentro das nossas casas precisamos reinventar a luta, a organização coletiva da nossa classe. No caso da educação superior pública, um certo debate tem agitado as discussões: a suspensão do calendário acadêmico. Fiquemos em alerta, porque até aí as máscaras que devem nos proteger do vírus, podem ser utilizadas para esconder o verdadeiro objeto em disputa: a instituição das aulas na modalidade a distância.
Por que devemos suspender o calendário acadêmico?
– Não há como exigir que trabalhadores e estudantes mantenham algum tipo de normalidade em uma conjuntura tão complexa e dura como a que estamos vivendo. Não devemos compactuar com a ideia de uma suposta “nova normalidade”. Não há nada de normal em um cenário com mais de 20 mil mortes e um governo ultraliberal, negacionista e genocida.
– A suspensão do calendário acadêmico também protege docentes e técnicos de possíveis práticas arbitrárias e autoritárias por parte das administrações locais, tanto da presença de trabalhadores nos campi, quanto da obrigatoriedade de “aulas virtuais”. Nós sabíamos que o Sintufes precisou fazer luta para impedir a obrigatoriedade do registro da frequência por ponto eletrônico para os técnicos-administrativos da UFES? Precisou fazer luta para que os servidores com idade superior a 60 anos fossem liberados das atividades presenciais no Hospital Universitário? Que tem acompanhado, sistematicamente, os contracheques, para verificar se nenhum direito vinculado ao trabalho foi retirado? Nós sabemos qual a realidade e as condições das trabalhadoras terceirizadas da UFES?
– A suspensão do calendário também considera que tanto docentes quanto estudantes apresentam condições diferenciadas de acesso a equipamentos, materiais virtuais e conexão à internet. A suspensão evita cobranças injustas e que podem ter como consequências doenças laborais e emocionais. Considera ainda as condições de trabalhadoras e estudantes com filhos e/ou familiares idosos ou doentes em casa, visto que a pressão e a intensificação do controle do nosso trabalho e da nossa produtividade em tempos de pandemia se combinam com a sobrecarga de demandas com os cuidados e as tarefas domésticas.
– A suspensão do calendário acadêmico possibilitaria ainda envolver toda a instituição de ensino (todos os cursos e setores) em ações concretas de enfrentamento à pandemia nas suas dimensões sanitária, econômicas e sociais. Essa deve ser a função social da Universidade neste momento. Sua prioridade precisa ser o enfrentamento à pandemia: sua produção de conhecimento, suas ações de extensão. O que os nossos cursos e nossos projetos estão desenvolvendo nesse sentido?
Pensando no Serviço Social, que é o curso onde leciono, podemos e devemos nos voltar para isso: orientar a população sobre o acesso ao Auxílio Emergencial, promover debates virtuais para discutir o trabalho profissional com estudantes e assistentes sociais que têm atuado nos serviços essenciais, se articular com as assistentes sociais da Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis e Cidadania para planejar medidas emergenciais para atender estudantes e trabalhadores que possam estar passando por necessidades materiais e subjetivas, criar fóruns virtuais com estudantes e profissionais que supervisionam nossos estágios etc.
A Universidade não está parada! Várias ações estão acontecendo! Ações importantes e decisivas para superarmos este difícil momento. O site da UFES tem noticiado algumas dessas ações. Elas são o mais importante nesse momento. Mais importante do que “aulas virtuais”. Mais importante do que manter, a qualquer custo, prazos, rotinas acadêmicas, editais, defesas de trabalhos. Se não compreendermos isso, estaremos fechando nossas janelas e nos distanciando da verdadeira função social da Universidade. No nosso caso, a única Universidade Pública do Espírito Santo.
Mas, uma pergunta permanece: a quem interessa manter o calendário acadêmico? Qual a essência dessa posição?
Durante a pandemia o MEC editou além da possibilidade das “aulas virtuais”[1], a Medida Provisória 934/2020. Tal Medida retirou a obrigatoriedade de cumprimento de 200 dias letivos no ensino fundamental e superior. Todavia, não houve nenhuma movimentação do Ministério para também flexibilizar a exigência legal das 800 horas/aulas. Vejam, a manutenção das 800 horas/aulas possibilita que essas horas sejam dadas na modalidade a distância. Sendo assim, seriam registradas e computadas como horas letivas.
Não temos dúvidas que o calendário acadêmico precisará ser totalmente revisto. Dois meses de aulas suspensas e não temos previsão de quando voltaremos às atividades presenciais. Necessitamos alterar datas de final de semestre, para colação de grau, para realização de provas finais, ofertas de disciplinas, período de férias docentes, defesas de trabalhos acadêmicos. Tudo isso, obrigatoriamente, precisará ser alterado, por isso é importante suspendermos o calendário e discutirmos, coletiva e democraticamente, um novo quando for possível. Suspensão não significa cancelamento. O que foi feito não será perdido. A suspensão aqui precisa ser entendida como uma estratégia política e não meramente administrativa ou jurídica (procedimentos administrativos podem ser revistos a qualquer momento e as interpretações jurídicas também expressam a luta de classes, não são neutras). É política porque é aliada da luta em defesa de um projeto de educação comprometido com a qualidade do processo de ensino-aprendizagem.
[1] Lembrando que na Ótica, “Virtual” é o contrário de “Real”. Me parece que não só na Ótica.
Sabemos que o projeto do Ensino a Distância no nível superior está na pauta dos governos brasileiros há tempos: Fernando Henrique Cardoso normatizou, enquanto os governos do PT ampliaram e diversificaram sua implementação. Bolsonaro já apresentava, ainda na campanha eleitoral, essa proposta. Toda essa expansão segue as orientações dos organismos internacionais, especialmente do Banco Mundial, que apresenta o EaD como a tática para oferecer uma educação aligeirada, massificada e fragmentada para os países da periferia da economia. A aparência de democratização do acesso ao ensino superior esconde a essência mercantil dessa modalidade que movimenta o mercado de pacotes tecnológicos e transmuta, ainda mais a educação – direito social – em mercadoria. E de má qualidade.
Importante lembrarmos também que mais de 4 milhões de brasileiros não possuem acesso à internet banda larga. O Brasil não possui uma política pública séria de “inclusão digital”. Nossa internet ainda é uma das mais caras do mundo e mais de 50% dos domicílios da zona rural não têm acesso à internet (Pesquisa TIC Domicílios, 2018).
A tendência que nossas análises apontam é que a instituição do EaD durante a pandemia é um ensaio para o pós-pandemia. Num contexto de crise econômica aguda, de retirada de recursos da educação pela Emenda Constitucional 95, a modalidade a distância se apresenta como solução mais barata e rápida: precisaremos de menos professores, quase nada de técnicos-administrativos e estrutura física. Vejam bem se isso não se combina com a proposta do Future-se que a maioria das universidades públicas brasileiras rejeitou?
Nesse sentido, mesmo se tivéssemos as condições materiais para oferecermos “aulas virtuais” com alguma qualidade (internet estável para todos os professores e estudantes, formação para ministrar essas aulas, espaço físico apropriado), teríamos condições subjetivas para isso? Fecharíamos as janelas reais para não ver mais corpos tombando e ficaríamos apenas nas virtuais transmitindo conteúdos para estudantes que podem estar com fome, sofrendo algum tipo de violência doméstica, vendo familiares e amigos morrendo? Será que é disso que nossos estudantes mais estão precisando neste momento?
O fato é que quem não está ansioso, com medo, triste, irritado, não está entendendo direito a realidade social que estamos vivenciando.
Precisamos, mais do que nunca, defender o trabalho intelectual docente, discente e técnico-administrativo, com autonomia e condições de trabalho e estudos. Defender a autonomia universitária e as instâncias democráticas da nossa Universidade. Não podemos aceitar passivamente que a Reitoria fique dois meses sem convocar reunião do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (CEPE). Essa instância é bem importante nesse momento porque temos ali representação, embora não dividida da forma mais democrática, de toda comunidade acadêmica. As dúvidas e questões que temos sobre os impactos administrativos da suspensão do calendário acadêmico precisam ser pensadas por essas instâncias que devem criar maneiras mais ampliadas e democráticas para ouvir estudantes, docentes, técnicos e a sociedade. Nossa defesa é pela gestão democrática da instituição de ensino. As Pró-Reitorias e os demais setores da Universidade devem pensar em alternativas que atendam aos interesses da comunidade acadêmica, fortalecendo as propostas que garantam a suspensão do calendário, bem como a manutenção das bolsas, dos empregos e dos direitos vinculados a eles.
O movimento sindical docente, o dos técnicos e o movimento estudantil também precisam nos seus fóruns (neste momento virtuais) destacar suas demandas e suas propostas, pressionando a Administração Central. Nós precisamos nos envolver nesses processos.
Também é importante destacar a posição dos nossos aliados históricos na luta em defesa da educação pública e de qualidade. O ANDES, o SINASEFE, no caso do Serviço Social, a ABEPSS (Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social), a ADUFES, o SINTUFES, o DCE, todos já manifestaram posição e seus argumentos em defesa da suspensão. Das 110 instituições federais de ensino superior no Brasil, 69% já suspenderam seus calendários. Não há nenhuma infração administrativa, nem irresponsabilidade nisso.
Nossa Universidade precisa se voltar exclusivamente para o enfrentamento da pandemia! Pela suspensão do calendário acadêmico, pela manutenção das bolsas dos estudantes, pela manutenção do emprego dos trabalhadores terceirizados e dos contratos dos professores substitutos. Contra a retirada de direitos vinculados ao nosso trabalho. Pela revogação da Emenda Constitucional 95, para que possamos ter o orçamento necessário para cumprir a nossa função social. Por uma educação pública, laica, presencial e referenciada socialmente! Essa é a janela que precisamos escancarar!
O necessário distanciamento social é para preservar as vidas e não para precarizar ainda mais o nosso trabalho e a educação pública.
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