Reforma Administrativa – rapinagem empresarial, corrupção e desamparo da população

O escandaloso pacto da Reforma Administrativa (PEC32/2020)  de Bolsonaro e Guedes plasma a dinâmica em que opera o Estado burguês na periferia do capitalismo. A ampliação dos mecanismos e estruturas para a transferência dos recursos públicos à iniciativa privada, bem como a abertura das comportas para a gestão empresarial de órgãos públicos são as bases do texto que tramita neste momento na Câmara Federal. A contratação temporária de servidores, a perda da estabilidade de emprego, a extinção de concursos públicos, que ora são mantidos, ora retirados da proposta, estão entre os pontos que têm conseguido retirar da inércia uma parcela de servidores e suas entidades sindicais, sobretudo nos três últimos meses, quando a PEC32 entrou na Comissão de Constituição e Justiça e, na sequência, na Comissão Especial, em que passou, por meio de flagrantes manobras e irregularidades de condução, com o texto já em sua sétima versão.

Atingindo servidores atuais e não somente futuros e transformando todas as esferas do serviço público em nicho para o interesse empresarial, a reforma reduz ao máximo o Estado,  com o fim inequívoco de garantir a acumulação do grande empresariado. Para citar apenas dois exemplos entre muitos, o aumento das taxas de lucros se dará por meio dos planos de saúde de baixo padrão a serem oferecidos à população, com o desmonte do SUS. Ou, ainda, o estrangulamento a níveis nunca vistos da educação pública em todas as esferas, naturalizando a suposta necessida da privatização da educação, sobretudo agora, em que a pandemia está em vias de se tornar salvo-conduto para transformar a modalidade não presencial em regra, ensejando o lucro crescente com o negócio da educação, a custos reduzidos.

Ao contrário do que dizem a grande imprensa e o governo Bolsonaro, segundo os quais os especialistas e a sociedade seriam supostamente favoráveis à PEC32, o debate público acumulado  desde setembro de 2020, quando começou a tramitar o texto, mostra que a população não está exatamente acreditando na eficiência que supostamente o serviço publico teria, com um Estado mais “leve”. Claro, não dá pra dizer que exista um debate público no Brasil, onde tampouco se formou uma esfera pública nos moldes das democracias burguesas em que perspectivas plurais convivem e são sujeitadas à escuta e tomada de posição pelo público. De todo modo, tendo como precedentes, a Reforma da Previdência e a Reforma Trabalhista aprovadas por meio de estratégia discursiva semelhante à que hoje se usa a respeito da PEC32, os trabalhadores em geral estão desconfiados, ainda que não necessariamente mobilizados, uma vez que suas condições de vida se deterioraram sensivelmtne nos últimos anos: o alto índice de desemprego, desalento, carestia, fome, adoecimento. Somem-se a tudo isso as denúncias de corrupção a respeito do governo Bolsonaro, que fertilizam essa desconfiança.

As centrais sindicais, fóruns, federações e suas bases de sindicatos dos servidores em todo o país têm se articulado para construir uma comunicação com a população a respeito da Reforma Administrativa, por meio de intervenções sistemáticas, regulares, com linguagem direta, multimodal, não raro cômica, valendo-se de memes, com suporte de agências de comunicação.  O problema é que a difusão desse contradiscurso a respeito do serviço público e dos reais interesses por trás dessa PEC tende a se limitar ao espaço das redes sociais, uma vez que encontra interdição na grande imprensa, concentrada nas mãos de um punhado de famílias historicamente detentoras dos meios. Diga-se de passagem, uma estrutura de comunicação social jamais alterada efetivamente, nem mesmo por Lula e Dilma, que poderiam ter levado a cabo a regulação da mídia prevista na Constituição de 88 e jamais feita.

A Reforma põe em jogo o reforço e ampliação dos liames entre o público e o privado, sempre a contrapelo do interesse público, e, como temos dito em diversos debates do movimento dos servidores no Espírito Santo e de outros estados,  a partir de uma lógica autoritária, fiscalista e privatista.

O autoritarismo se traduz na falta  de respaldo técnico jurídico; no desprezo pela auscultação da sociedade e dos servidores para a consecução aligeirada de mudanças profundas na Constitiução; na campanha difamatória contra os servidores (verbalizada sem pejo, mesmo por Guedes em diversas ocasiões) e na cessão que se propõe a fazer de superpoderes ao presidente da república, que terá discricionalidade para extinguir órgaos, cargos, carreiras e implementar prática de assédio institucional, que já faz aceno desde que Bolsonaro chegou ao governo. A reforma administrativa portuguesa de 2011 serviu de inspiração para a formulação desta versão tupiniquim de contrarreforma, época em que já grassava a chamada terceira onda de reformas administrativas mundo afora, precedida pelos ciclos reformistas neoliberais de Margareth Thatcher, Ronald Reagan e pelo Consenso de Washington (1989), que instituiu balizas austericidas para o ordenamento econômico nos países da periferia do capitalismo. Em processo de revisão hoje, a reforma portuguesa tem sido criticada inclusive por autores liberais que reconhecem os profundos danos causados à sociedade, dentre os quais o aprofundamento das desigualdades, o recrudescimento da violência em todas as áreas e, no que diz respeito aos servidores, assédio moral crescente, aumento do adoecimento psíquico e físico, quebra de solidariedade interna das agências públicas do Estado, desconfiança dos servidores em relaçao às suas chefias e enfraquecimento das entidades sindicais.

O traço fiscalista da reforma de Guedes se detecta na proposição intransigente de cortes nas despesas públicas, em detrimento da qualidade e abrangência do atendimento da população. Expressão por excelência do fiscalismo na PEC32, o fim do regime jurídico único dá lugar a várias novas formas de contratação, vulnerabilizando servidores à ampliação da precarização. A estabilidade do servidor seria alcançada apenas por um desses novos vínculos, denominado ‘cargo típico de Estado’, sobre o qual a PEC é totalmente vaga.

A PEC é privatista na medida em que chancela práticas já existentes de tentativa de ampliação do empresariamento da estrutura do Estado com base em sofismas amplamente divulgados, como, por exemplo, a alegada oposição entre estabilidade do servidor versus eficiência. Decerto se torna imprescindível ao projeto ultraliberal a disseminação da ideologia da ineficiência e o apagamento do conceito de estabilidade do servidor como mecanismo de garantia da defesa dos interesses do Estado, não raro contrários aos governos de plantão. Não é circunstancial, nesse sentido, que a retirada da estabilidade – caso figure na versão final da PEC – cumpra o papel de manter servidores sob a pressão de gestores, pondo à lume mais uma entre as diversas acusações inverídicas sobre o serviço público: a de que a reforma acabaria com a corrupção. Ao contrário, a suscetibilidade de servidores sem estabilidade e com contratos precarizados seria ingrediente fundamental às práticas de compadrio e outras formas de corrupção.

Outras afirmações a respeito da PEC32 que não têm sustentação no texto são as de que a reforma supostamente eliminaria privilégios, sanaria as finanças e atingiria apenas futuros servidores. Contudo, em relação a isso, o texto é tão inconsistente quanto acintoso, uma vez que ratifica os privilégios salariais, alvejando a base da pirâmide e mantendo incólumes magistrados, militares e parlamentares; oblitera o fato de que o gasto com serviço público tem se mantido há 20 anos em 4,5% do PIB (registre-se, aliás, que Bolsonaro decretou sigilo a respeito de documentos técnicos e de natureza jurídica que deram base à formulação da proposta) e inclui servidores atuais na lógica de austeridade e arrocho, acabando com a progressão por tempo de serviço, fazendo periclitarem benefícios e auxílios e sujeitando os servidores à avaliação de desempenho no contexto de possível aprovação ou alteração de legislação baseada em critérios subjetivos de avaliação, o que facilitaria a perda do cargo.

A modificação de nada menos que 27 trechos da Constituição e o acréscimo de 87 novos itens para a implementação da Reforma Administrativa são evidência da tentativa de destruição do Estado de bem-estar social – claro, previsto na letra da lei, jamais traduzida, porque impossível de sê-lo, na vida social no modo de produção capitalista – e sua substituição pelo Estado de bem-estar empresarial. A fórmula PPP = parceria público-privado do jargão ultraliberal tem sido acertadamente corrigida para traduzir as condições objetivas que a PEC32 deseja produzir e contra a qual é necessário o enfrentamento, qual seja, PPP = promiscuidade público-privado, às custas da população brasileira.

Desde meados de setembro, iniciou-se por meio de quase todas as centrais sindicais, fóruns e sindicatos a jornada de luta em Brasília, com vigoroso movimento nos aeroportos, escracho de parlamentares, marchas, faixaços, ocupação de sessões, visita a gabinetes e vigília em frente ao Anexo II da Câmara, onde ocorrem as reuniões das comissões e, por fim, a sessão plenária da Câmara. A mobilização nas redes também se intensificou. Nada disso deteve o resultado, em alguma medida,  já esperado: os trabalhadores foram derrotados. A aprovação da proposta pela Comissão Especial no dia 23 de setembro se deu por votação apertada, com 28 votos favoráveis e 18 contrários. Dentre os 28 votos, 8 parlamentares – todos do Novo – foram plantados na Comissão na véspera para garantir a posição do  governo. Oito partido de oposição –  PT, PCdoB, PSOL, PDT, Rede, PSB, Solidariedade e PV – fecharam questão em relação à posição contrária à PEC32 ainda durante os trabalhos da Comissão. A avaliação é que a aprovação no plenário da Câmara é incerta. O governo precisa de  308 votos favoráveis, entre os 513 parlamentares, daí Lira até hoje não ter colocado a pauta na ordem do dia.

A iminência da aprovação da PEC32 tem sublinhado tanto a limitadíssima capacidade de mobilização das bases das categorias de trabalhadores por sindicatos (há muito tempo, rendidos à burocracia jurídica, que, por longos anos, têm preterido a tomada das ruas pela luta institucional) quanto a possibilidade de um movimento de fecundo cultivo da revolta, com organização, capilaridade e uma consciência ainda a ser construída sobre a necessária articulação de trabalhadores das esferas do serviço público, com aqueles dos setores produtivo, comercial e dos transportes para avançar no enfrentamento ao Estado burguês.

Vitória-ES, 03 de outubro de 2021.

Obs: uma versão preliminar deste texto foi publicada no site do Sindicato dos Oficiais de Justiça, em junho de 2021.

 

*Junia Zaidan – é Linguista e tradutora, professora do Departamento de Línguas e Letras (CCHN/Ufes). Coordena o programa de extensão Observatório de Tradução. Atua na atual gestão da Adufes, como secretária geral.

Os textos dos docentes não expressam, necessariamente, a opinião da diretoria da Adufes. Se você, docente associada(o), deseja contribuir com textos autorais ou co-autorais opinativos, análises, crônicas, ensaios, poemas, contos, envie-nos em formato doc (aberto), acompanhado de uma foto e breve biografia.

Como manifestação livre da categoria, as contribuições podem versar sobre temáticas direta ou indiretamente ligadas às pautas do movimento sindical. Recebidos em fluxo contínuo, os textos serão publicados conforme a ordem de recebimento ou urgência do tema. Entre em contato!