Texto da sessão “Fala, docente”
No ano de 2021 a Associação dos Docentes da Universidade Federal do Espírito Santo (Adufes-Ssind) realizou uma pesquisa intitulada “Percepções sobre o Trabalho/Ensino Remoto e saúde na Pandemia” que teve como objetivo não só dar visibilidade a algumas dimensões dos processos de trabalho docente em curso, em tempos de pandemia, na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), mas, principalmente, criar um caminho para que esse debate pudesse ganhar um outro patamar a partir dos diálogos que a investigação pudesse disparar. Desde o início foi dito que se vislumbrava trazer “um pouquinho”, como nos diria Portelli (1997)[1], sobre o vivido na Universidade ao longo deste período. O autor usa essa expressão – ‘um pouquinho’ – referindo-se a uma modalidade de pesquisa que busca apreender alguns aspetos da realidade, o que não deve ser compreendido como uma forma de desqualificação do método e, sim, tomar a chamada “coleta de dados” como um indicativo de que as histórias de uma dada realidade social são infindáveis, constituindo um tremendo equívoco achar que conseguiremos conhecer tudo sobre ela em nossas pesquisas ou que qualquer plano de amostragem, por melhor que seja, será um reflexo inequívoco da realidade pesquisada. Fazendo uma inflexão do que afirma o autor, considero que a pesquisa desenvolvida pela Adufes visou distanciar-se de uma busca pela construção de uma história única, acerca da qual poderíamos dizer: “É isto, o que apresentamos é a verdade de tudo o que aconteceu na Ufes, ou ainda, o que pretendemos é afirmar que esta pesquisa representa de forma inconteste a realidade, a verdade sobre o trabalho dos docentes na Ufes”. Não foi esse o propósito. Ao abrir o caderno em que a pesquisa foi publicada encontramos de imediato a postura ético-política que a orientou, ou seja, uma postura que não vislumbrou expressar uma verdade inquestionável sobre a realidade pesquisada, uma vez que não é essa a aposta ética quando o tema é: Metodologias de Pesquisa em Ciências Humanas e Sociais.
Entendo que somos constituídos pelo tempo e por diversos processos sócio-históricos, em constante atualização. Sendo assim, concordando com Portelli (1997)[2], consideramos que a pesquisa mencionada foi produzida num determinado momento da vida na Ufes e o intuito, dessa forma, não foi o de colocar um ponto final na história, mas, sim, afirmar que uma história se constrói enquanto se conta. O que mais nos interessou (e interessa) é abrir o diálogo, e isso ocorreu.
Várias foram as questões levantadas com relação a pesquisa, desde a consideração de que teria um viés fortemente ideológico e tendencioso até questões procedimentais, como por exemplo, a alegação de a mesma não “seguir critérios científicos adequados; apresentar problemas de amostragem e que os dados extraídos desse levantamento não permitiriam a sua extrapolação para o conjunto de docentes da UFES”.
Isso posto, indago: teria uma pesquisa com humanos, docentes no nosso caso, o objetivo de generalizar seus resultados para a totalidade de professores e professoras da Universidade em tela? Podemos tratar os resultados de uma investigação sobre processos de trabalho como um espelho fiel de como se trabalha na Ufes? O que seriam critérios científicos? Quem os define? Haveria uma única voz para atribuir um selo de qualidade a uma pesquisa? Pretende-se contar uma única história? Seriam os critérios estatísticos os únicos a serem observados quando visamos pesquisar em Ciências Humanas e Sociais? O que seria considerar a opinião de especialistas? Os únicos especialistas seriam os professores de estatística da Ufes? A pesquisa não foi realizada também por especialistas em pesquisa da Ufes de outros departamentos e também de estudiosos que atuam fora da Ufes? Afinal, o que é um especialista? Buscamos, insistentemente, abrir o debate. Não nos aliançamos com as diferentes formas de corporativismo.
Alguns colegas afirmaram que a pesquisa foi publicada ignorando-se sumariamente o que foi indicado por pesquisadores no campo dos estudos em estatística da UFES, o que seria “uma demonstração de desprezo pela ciência feita pelos docentes associados”. Ciência? De que ciência se trata? Teríamos uma única posição sobre o que entendemos a respeito de pesquisa e de ciência? Ou o mais interessante e rico para pesquisadores e pesquisadoras seria abrir os resultados de uma pesquisa para que possam ser discutidos, contestados, questionados e, assim, avançarmos, sem ressentimentos ou reatividade, mas nos lançando à ação, ampliando nosso poder de agir e de interferir no que vivemos? O saber que nos oferece a estatística seria o único caminho para a validação científica inconteste de uma pesquisa? A desqualificação de todos os outros especialistas que se dedicaram com atenção e rigor na condução da mesma seria defensável em função de um corporativismo?
Pois bem, sabemos que, apesar das intermináveis tentativas de incluir as Ciências Humanas no campo das ciências consideradas fidedignas ou verdadeiras e tornar o método científico mais abrangente não tem ocorrido sem um rigoroso debate. Poderiam as Ciências Humanas e Sociais serem consideradas Ciências (com letra maiúscula)? Apresentariam essas ciências a mesma objetividade das Ciências Exatas? Seria isso desejável? As ciências nomeadas de humanas e sociais ao abordarem as manifestações da vida e as experiências dos humanos no mundo social e histórico, nos indicam que o principal modo de efetivá-las seria por meio de métodos que acompanhem o vivido no curso do tempo.
O pesquisador busca pensar o que está estudando em função das circunstâncias mais gerais da sociedade, da cultura ou do tempo histórico de que está tratando. Seu método é, em outras palavras, “compreensivo” – não basta descrever o objeto de estudo, ou relacioná-lo com outros, é necessário entender o seu sentido, atribuir sentidos pautados numa determinada direção ética que nos ajude a avançar neste debate.
Observamos um incansável movimento que visa dar às Ciências Humanas o mesmo estatuto à maneira das Ciências Exatas ao defender que é preciso olhar os fatos sociais “como se fossem coisas” e fazer uso das estatísticas, para verificar as relações entre diferentes fenômenos sociais, seria imprescindível.
Segundo o cientista social Pierre Bourdieu[3] (1996), uma investigação científica significa poder viver o cotidiano, indagar o banal para nele ver não o imediato, mas as estruturas sociais e, então, pesquisar histórias de gente comum, sua trajetória, seu cotidiano e analisar o sentido das macroestruturas que sustentam e delineiam o campo social.
Um método de pesquisa, portanto, implica uma postura ético-política, que nos indica de onde e como falamos. Não existe neutralidade em pesquisa. O método escolhido e o modo de pesquisar indicam essa postura, esse ethos. Se tomarmos em conta que a vida é movimento permanente, que não caberia em nenhum modo padrão, em nenhuma plano de amostragem, por mais rigoroso que esse pretenda ser, apostamos numa racionalidade para além das articulações binárias de causa e efeito, contrapondo-nos aos modelos demonstrativos-representacionais, derivados de uma racionalidade cartesiana-positivista-calculante.
O desafio a que nos lança tal proposta metodológica, em linhas gerais é, assim, o de exercitar a sustentação da abertura de pensamento para receber, sem pré-conceitos, tudo o que for se apresentando no processo de pesquisar como condição de possibilidade para se produzir conhecimento pertinente e consistente. Um conjunto de procedimentos definidos a priori, são orientações, designadas como pistas. No entanto, indagar sua cientificidade ou sua validade a partir de parâmetros exclusivamente matemáticos ou estatísticos, é não perceber os movimentos que vão se desenhando no curso do pesquisar, esquecer que a vida é esse movimento explosivo e imprevisível, é atribuir aos humanos a possibilidade de aprisioná-los em belos quadros estatísticos.
Cabe reafirmar que não se trata, aqui, de desconsiderar a importância da Estatística no âmbito das pesquisas em Ciências Humanas e Sociais. O que chamamos a atenção é para o fato de que pesquisar a vida humana, em qualquer de suas dimensões, implica acompanhar processos. Essa é a dimensão priorizada. São os processos e a dimensão interventiva que orientam uma prática investigativa, no nosso entendimento. Nenhuma pesquisa que almeje rigor acontece sem o mínimo de parâmetros e de propósitos. Porém, as metas e os objetivos são móveis e flexíveis por encontrarem-se subordinados aos caminhos que vão sendo desdobrados no próprio processo do pesquisar, que acontece como intervenção. Por esta razão, a pesquisa realizada pela Adufes sugere uma reversão da concepção tradicional de método porque a primazia recai sobre a experiência do caminhar da pesquisa.
Destarte, o acompanhamento de processos, inevitavelmente, traz um forte viés interventivo e, por essa razão, assume o caráter de pesquisa-intervenção, uma vez que dispara pensamentos outros, disputas, controvérsias, e isso é fundamental no campo da ciência, pois não estamos tratando de postulados religiosos que devem ser respeitados sem qualquer contestação. Pesquisar é intervir na realidade e não apenas representá-la. Cabe lembrar, ainda, que a intervenção que uma pesquisa opera não é unilateral, ou seja, ela não se dá em um sentido único. Todos os que estão envolvidos de alguma forma, mesmo aqueles que declararam seu desinteresse em participar, estão implicados no processo. Portanto, pesquisador-pesquisados-campo sofrem os efeitos do ato de pesquisar. Reiteramos: estamos falando de pesquisa com humanos, vivos, e, então, o que importa é estarmos atentos ao que se passa ao longo do pesquisar. Errâncias são próprias do pesquisar-viver. Esta atenção ao curso do pesquisar, os debates que dispara, as indagações surgidas, as discordâncias, fazem parte do método. Ninguém tem a última palavra.
Por ser interventiva, tal perspectiva supõe, inevitavelmente, um mergulho na empiria onde acontece a investigação, o que implica embarcar no movimento das forças do campo social, de modo a compor, com sua presença e ações, movimentos que vão se desenhando e fazendo emergir paisagens, formas e realidades, também em movimento. Presume-se, portanto, que não há qualquer pretensão à neutralidade. Pesquisadores, objeto e participantes, encontram-se em um mesmo plano no qual estão implicados, inseparavelmente.
Concluímos reafirmando que um método diz respeito à dimensão processual da realidade na qual estão todos implicados, participando, com algumas especificidades, da tecitura de um mundo comum, o qual é heterogêneo, diverso, múltiplo, fazendo emergir o entendimento de uma realidade complexa, em constante movimento.
Trazer para a pesquisa, como “material” significativo, a experiência no ato de pesquisar, aponta para uma “nova ordem” na produção de conhecimento cientificamente válido. Busca-se, portanto, resgatar a dimensão do sensível como abertura e orientação no processo de pesquisa, mediante o cultivo do olhar e da atenção aos movimentos em curso e aos efeitos no campo. Talvez um plano de amostragem nos sirva para isso: como pista para acompanhar processos de trabalho. Plano que pode ser revisto inúmeras vezes, mas com a certeza de que nunca será exaustivo, já que entendemos que a realidade é movente, logo, um plano de amostragem produzido em certo momento pode não mais ser adequado em outro. Assim sendo, tal plano pode disparar um processo, mas não vai aborda-lo de forma absoluta, nem isso nos parece desejável se o debate é sobre Ciências. Reafirmamos, assim, que fazer pesquisa é disparar conversações, que serão sempre díspares ou não serão conversações.
Cabe destacar, por último, mas não menos importante, que esta foi a primeira pesquisa feita com aposentadas/os dessa Universidade, trazendo questões da maior importância para pensar as lutas sindicais no que se refere a vida institucional daquelas/es que integram o corpo docente em exercício na UFES.
O que estamos pretendendo com essas afirmações? Inferir que o método concebe a prática da pesquisa como ação corporificada na pesquisa-em-sintonia-com-o-contexto-de-estudo, de forma que se produz saber pelo fazer, pelos percalços. Produzir conhecimento é posicionar-se e tomar posição no mundo. Nenhuma ciência é neutra porque ela nasce como necessidade de resposta às inquietações humanas em meio ao mundo humano, situado, datado e encarnado em cada sujeito em sua multiplicidade expressiva.
[1] Portelli, A. (1997, abril). Tentando aprender um pouquinho. Algumas reflexões sobre a ética na história oral. Projeto História, 15(1), 13-49.
[2] idem
[3] Bourdieu, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. São Paulo: Papirus, 1996.
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