UMA HISTÓRIA NA DOCÊNCIA: ENTRE O APOIO, O SILÊNCIO E A RESISTÊNCIA

Participei de um “Encontro Formativo” oferecido pela Departamento de Desenvolvimento Pedagógico da Ufes. Senti profunda vergonha… Não estou falando sobre ensino remoto: sim ou não. Também não me refiro a uma falsa polêmica que se tenta colocar numa dicotomia pautada pela lógica formal do nós x eles. Estou com vergonha do nível de preparo para “formar” para o ensino remoto. Não é uma atitude pessoal. É o Departamento de Desenvolvimento Pedagógico materializando uma política institucional praticada por pessoas, o que é muito diferente.

Dizem eles/as que é preciso ter calma e saber que vamos ter dificuldades e limites. Por isso, de acordo com as “dicas” de “Boas práticas dos professores no ensino remoto”, é necessário que a/o docente se prepare “emocionalmente e tenha paciência com os problemas de conexão [1]”, além de “enfrentar esse cenário atípico com motivação [5]”; não se cobrar muito, afinal, “estamos no meio de uma pandemia [3]” e compartilhar “conhecimentos com seriedade, mas sem perder a leveza [4]”.

Como se preparar emocionalmente? Muitas/os recorrem/recorrerão a medicamentos, terapia e outros recursos, para enfrentar esse “cenário atípico”, em que nossa instituição nos meteu, sem nenhum suporte, sem adequado planejamento e sem priorizar a vida das pessoas. O quadro hoje é que podemos adoecer e perder nosso viço (ou “leveza”), não necessariamente por termos sido acometidas/os pela Covid-19, mas pela situação de sofrimento que nos é imposta.

Sinto a angústia das/os docentes que recebem modelos de passo a passo “muito intuitivos”, dizem eles/as e assim colocam a responsabilidade de quem não consegue acompanhar, em cada indivíduo, que se sente incompetente, incapaz, despreparado, desamparado. A angústia vira dor, física e psicológica e afeta diariamente cada vez mais docentes.

Nos sentimos abatidas/os, porque não nos basta indicar: “se organize para as aulas e crie uma rotina [7]”. Qual rotina? Não estamos “no meio de uma pandemia”? A rotina do possível não comporta nossas vidas nessa caixa de suposta normalidade. É vazio, portanto, dizer: “cuide-se: esteja atento às questões ergonômicas, à saúde mental e à sobrecarga de trabalho [10]”.

Em certa altura do Encontro Formativo, questionei se era indicado restringir as perguntas de estudantes, com dinâmicas como a que nos foi proposta (as pessoas tinham apenas 1 minuto para escrever suas perguntas no chat). A explicação foi que com uma turma muito grande e/ou muito “falante”, será preciso limitar, pois do contrário seria/será impossível responder a todas/os. Faz sentido. Num modelo virtual, onde sequer conseguirei ver todos os rostos das/os discentes, não posso ter a expectativa de conseguir dar conta de tantas coisas. Preciso “não me cobrar demais”…

Em mais de duas décadas de docência, entre a educação infantil e o ensino superior, nunca deixei de responder uma pergunta. Mesmo que fosse para dizer que não sabia a resposta e que voltaria a tratar do assunto em outro momento. Mas não me lembro, nunca, de ter dito que não podia responder por falta de tempo ou por metodologia. Aliás, considerando a tônica epistemológica colocada no Encontro Formativo, de uso de metodologias “ativas”, em que se sustenta a construção de conhecimento pelas/os próprias/os discentes, é contraditório limitar suas vozes, não?

Chega a ser ofensivo nos orientar a não nos cobrar demais. Como servidora pública, tenho compromisso com a qualidade do trabalho que realizo e que é destinado ao povo, que deve ser respeitado e ter o melhor do serviço público. Dizer que posso fazer algo meia boca e justificar a baixa qualidade de meu trabalho por causa da pandemia, a um só tempo, corrobora os inúmeros ataques e desqualificações que fazem de nós e atesta que não devíamos estar nos preparando para lecionar por ensino remoto, por ser um modelo de péssima qualidade.

Mas o ensino remoto é uma “solução que nos tira de uma situação de ausência”, disse o reitor! Ausência de quem? Eu não me ausentei um único dia de minhas atividades. Mantive intensa e precariamente (pela falta de condições de trabalho adequadas oferecidas pela Ufes) tudo o que diz respeito às tarefas administrativas (incontáveis reuniões de departamento, colegiado, fóruns etc.), de pesquisa (sete orientandos de pós-graduação, participação em bancas de mestrado e doutorado, elaboração de 5 artigos científicos) e diria que indiretamente, também de ensino, porque continuo lendo, estudando e isso terá repercussão em minha prática pedagógica. Então, se houve ausência, ela não foi nossa e deveríamos ser defendidos por nosso dirigente e não exposto por ele como negligentes e faltosos.

De tudo isso, fica uma lição que aprenderemos a duras penas: ou nos apoiamos e nos fortalecemos com muito afeto e com muita resistência, ou seremos engolidos pelas narrativas de que deu tudo certo nesse modelo indecoroso adotado na Ufes. E entraremos para a história com nome, endereço, CPF e Siape de quem participou disso, seja pelo apoio, seja pelo silêncio.

Obs. 1: os trechos entre aspas são dos slides exibidos durante o Encontro Formativo, sob o título mencionado no texto: “Boas práticas dos professores no ensino remoto”.

Obs. 2: os números entre colchetes correspondem à numeração das “Boas práticas dos professores no ensino remoto”.

Obs. 3: optei nesse texto por dar foco ao aspecto da formação docente, o que não significa que angústias e dificuldades não existam para técnicos e discentes.

Obs. 4: nesse texto escrevo como professora da base do sindicato, ainda que nesse momento esteja como dirigente, pois quis me expressar do lugar da docência, o que não implica nenhuma divergência com minhas/meus companheiras/os de diretoria da Adufes.

*Ana Carolina Galvão – Pedagoga, doutora em Educação Escolar, professora do Departamento de Teoria do Ensino e Práticas Educacionais do Centro de Educação e do Programa de Pós-graduação em Educação da Ufes. Docente da área de Didática e Prática de Ensino. Líder do grupo de pesquisa “Pedagogia histórico-crítica e educação escolar” e membro do Grupo de pesquisa “Estudos marxistas em educação”. Realizou estágio de pós-doutoramento na Unicamp sob orientação do Professor Dermeval Saviani. É autora de artigos científicos, capítulos e livros, entre eles “Fundamentos da didática histórico-crítica”, escrito com Tiago Nicola Lavoura e Lígia Márcia Martins (2019), indicado ao Prêmio Jabuti 2020 na área de Educação e Pedagogia e “As perspectivas construtivista e histórico-crítica sobre o desenvolvimento da escrita”, finalista do Prêmio Jabuti em 2016 na mesma área.

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