O ensino remoto como laboratório do projeto neoliberal: temos alternativa?

A comunidade universitária da Ufes enfrenta novamente um desafio que tende a gerar polêmicas e controvérsias: o retorno às atividades de ensino durante a pandemia pela chamada via remota. Defendo que, neste momento histórico, em que se coloca no horizonte a) um governo ultraneoliberal de feições fascistas, contrário à ciência e à educação, b) intensificação da crise estrutural do capital que corrói a economia global e c) uma pandemia social produzida pelo sistema (in)civilizatório reinante; devemos nos posicionar contrários a qualquer solucionismo tecnológico que coloque em risco nossos princípios de universidade pública, laica, de qualidade e voltada à emancipação da classe trabalhadora. Compartilho alguns motivos que me levam a essa posição e, no final, alguns apontamentos sobre nossa alternativa.

  1. As políticas de Ensino Superior no Brasil: o movimento de intensificação de um novo ethos para a Universidade não surgiu hoje. Primeiro, foi a invasão dos terceirizados nas instituições públicas… depois as formas de gestão privada gerencial, vide o modelo da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBHSER), com contratações sem concurso público e busca de recursos com empresas privadas. Isso sem falar dos prejuízos dados por uma política de ampliação de vagas sem contrapartida nos investimentos em infraestrutura, advinda do projeto de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni) e também a ampliação do suporte financeiro estatal às universidades privadas fornecidas pelo Programa Universidade para Todos (Prouni). Órgãos multilaterais como o Banco Mundial sempre previram para o Ensino Superior dos ditos países em “desenvolvimento” um modelo de ensino superior aligeirado e de certificação massiva. Movimentos como o “Todos pela Educação” são organismos privados paralelos de defesa desse projeto. Aliás, podemos perceber que a EaD no Brasil busca esse horizonte, associando a precarização do trabalho docente a um projeto intencional de baixa qualidade nos saberes disseminados. O (des)governo de Bolsonaro ataca as IFES com o Future-se e oferece a ampliação de EaD como único horizonte, já autorizadas por ele no meio da pandemia. O intuito é corroer por fora e por dentro a universidade pública que conhecemos. O teto de gastos (PEC do Fim do Mundo) que limita investimentos coloca em cheque a autonomia universitária. O projeto em voga é o velho/novo neoliberalismo que, mais do que um modelo político e econômico, afirma-se como uma maquinaria articuladora de subjetividades “empreendedoras”, preparadas para a servidão no trabalho informal de serviços. A Universidade tem um papel reservado nesse projeto. Os profissionais da educação, em particular os docentes das federais, estão cada vez mais afetados pela mentalidade contábil da busca de resultados. O produtivismo desvairado é sintoma dessa mentalidade.
  2. A questão pedagógica: os limites do ensino presencial, apontado por muitos colegas, não podem servir de baliza para a utilização do modelo “gambiarra” de ensino remoto que corremos o risco de implantar. A formação universitária envolve o pertencimento em uma instituição pública e múltipla, que mais do que uma “escola”, desenvolve um debate científico articulado com a extensão de saberes e práticas. Universidade é espaço de sociabilidade ampla, e no Brasil, identificada com movimentos amplamente democráticos e críticos (não é a toa que o bloco histórico do capitalismo financeiro quer destruí-la). Universidade é vivência, assimilação lenta e aprendizado reflexivo. Não pode ser identificada, nem em situações extremas, com uma tela de computador inserida na rotina desgastada e catastrófica dos lares isolados da comunidade universitária. O debate sobre as possibilidades reais de aprendizagem mediada por ferramentas tecnológicas tem largo escopo e para serem bem sucedidos, esses recursos digitais exigem treinamento intenso das partes envolvidas, disciplina, inúmeros momentos presenciais, maior tempo de planejamento, correção de percurso e desenvolvimento da relação pedagógica e também requer equipes amplas e bem treinadas, dinâmicas de envolvimento de tutores, etc. Muitos pesquisadores sérios desenham essas formas de aprendizado, embora, dificilmente possamos as vê-las sendo executadas. Isto porque o lucro e a redução de custos são a cereja do bolo desses processos.
  3. A questão tecnológica: a internet não é neutra. Acostumamos a ver apenas a aparência fenomênica dessas ferramentas (o que por vezes nos deslumbra e diverte), mas há uma parte “invisível” das TICs que não dominamos. Elas são posse de conglomerados globais que, por meio da datificação, expropriam o conhecimento produzido pela humanidade. Como aponta o crítico Morozov, o Vale do Silício tem interesse no domínio de todo o conhecimento produzido no planeta. Em tempos de “Escola sem partido”, imaginem que ameaças poderemos sofrer por conta de nossas aulas gravadas por essas plataformas… Somos alienados da programação e dos algoritmos dessas mídias digitais. Entendo que qualquer saída que nos coloque na posição de não sermos agentes do saber e dos recursos de aprendizagem – e de não atuarmos como os verdadeiros sujeitos de um diálogo rumo à emancipação – esvazia a universidade de seu potencial histórico. Além disso, há um plano dos conglomerados, inclusive de empresas como a Alphabet (dona do G-Suíte que a reitoria está de olho), para dominar todo o território digital, acoplando em seus tentáculos o home office, o home schooling, e o trabalho remoto de milhões de pessoas. Para as classes subalternas, fica o papel de servir a “casa” material, sede “protegida” e “segura” das virtualidades da vida capitalista do século XXI. Colocar o pragmatismo imediatista das soluções “remotas” no interior de nossas universidades é uma forma preliminar de adesão a esse projeto. Por mais que se vaticine a provisoriedade dessa solução mágica (com o discurso de que precisamos voltar a funcionar), ela será parte (querendo ou não seus defensores) do laboratório neoliberal que as classes dominantes preparam, aproveitando-se das fragilidades sociais trazidas pela pandemia do Covid-19.
  4. A pandemia: precisamos sobreviver, e não adoecer com nenhuma outra enfermidade. A saúde pública em vias de colapso não poderá nos auxiliar. A Covid-19 já afeta nossa saúde mental, a dor de perder ou cuidar de alguém já nos acomete e vai avançar ainda mais sobre nosso cotidiano. A vida concreta da comunidade universitária é atravessada por essa catástrofe. Qualquer “novo normal” sem empatia com a dor que todos sofremos, bem como o achatamento estatístico do que são os lares dos alunos nessa conjuntura, pode nos impedir de realisticamente entender o que o ensino remoto representa. Não são os computadores e smartphones que são postos em relação no ensino digital e sim, seres humanos atrás das máquinas aprisionados em suas casas. Não compreender o que eles necessitam efetivamente é o maior erro que pode ser cometido.
  5. Nossos empregos: nunca trabalhamos tanto e de forma tão precária. Creio que isso não é regra entre todos os docentes, mas quem desenvolve pesquisa e extensão, além da militância em outras entidades, não está de mão abanando e simplesmente pegando o salário no início do mês. O Brasil de hoje precisa muito do trabalho docente. Esse não pode ser confundido com o desaguar aligeirado de profissionais para um mercado profissional instável. O trabalho docente é necessário porque a pesquisa e a intervenção ainda é possível de ser realizada pela universidade. Urge fazermos também a resistência! Os ataques não cessam e nós, acostumados a sempre dar um jeitinho, sempre com boas intenções, daremos uma solução paliativa que é exatamente o que nossos inimigos desejam. Estávamos na eminência de uma greve e agora queremos ser gestores de uma crise que não produzimos? Assumir a ação que nossos adversários desejam que façamos é uma aposta muito arriscada. Essa decisão está em nossas mãos!
  6. O que fazer? Temos sim que planejar as mudanças que virão (o que já estamos fazendo em certa medida). Devemos nos dedicar fortemente a pressionar o governo e a administração local por melhores estruturas, mais professores, mais condições de saúde e segurança para todos. Temos que exigir desde o álcool em gel fundamental para conter a transmissão até reformas mais amplas na estrutura das unidades. Não podemos correr o risco de trocar a sala de aula física pela virtual, demonstrando que os terrenos, prédios e instalações da Ufes podem ser rifados no Future-se. Todo professor da Ufes deve se engajar em extensão e pesquisa, atuando nos limites possíveis e envolvendo fortemente os discentes. Também podemos sim realizar atividades de formação complementar, reestabelecendo os vínculos perdidos entre nós. Precisamos mostrar a cara da Universidade como fez a UFBA com seu Congresso. Atuar com solidariedade com outros profissionais, como os trabalhadores da saúde, entregadores de aplicativos, entre outros. E mais, temos a obrigação de pensar um novo país, pós-pandemia e pós-fascismo. Chegou a hora de ser o que nossos adversários odeiam! A normalidade de aulas remotas para cumprir calendário abafa esse projeto de forma imediata, além dos riscos já apresentados anteriormente. Em 2020 a universidade está sendo convocada a resistir e a atuar de outra maneira. Quando a gente faz greve, paramos de trabalhar para atuar e organizar a luta. Que tal deslocarmos a Universidade para realizar outro projeto societário, outra proposta de educação que seja verdadeiramente emancipatória e que vá além das amarras disciplinares?

O inimigo cresce a cada dia, estejamos à altura do embate.

*Rafael Bellan – Professor do Departamento de Comunicação Social da UFES. Membro do Grupo de Pesquisa Trabalho e Práxis

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